O homem-urso

O nome de Treadwell será menos conhecido: digamos, para simplificar, que se tratava de uma espécie de naturalista amador, fascinado pelos ursos do Alasca, em cuja perigosa companhia passou os últimos 13 Verões da sua vida, até encontrar o destino que, segundo um dos intervenientes no filme, "estava a pedir": foi devorado por um urso.

Treadwell morreu comido em 2003 e deixou uma fundação, a Grizzly People, gerida por uma antiga namorada, que tem por missão a protecção da fauna - de todo o mundo mas especialmente dos ursos e das raposas do Alasca. Querendo divulgar a obra de Treadwell, a antiga namorada encomendou um filme a Herzog (primeira bizarria: de todos os cineastas do mundo, a encomenda havia de ir parar a Herzog...).

Aqui entra o aspecto mais fascinante desta história: é que o dito Treadwell não se limitava a passar temporadas com os ursos - filmava-as com uma câmara de vídeo, utilizando depois o material para conferências em vários liceus americanos. À data da sua morte, havia centenas de horas de material filmado com Treadwell e os seus ursos, e foi esse material a base do trabalho de Herzog.

Assim começa a fazer mais sentido, e basta ver o tipo de imagens que compõe o legado vídeo de Treadwell para que se possa imaginar o que nele cativou Herzog. Como nos filmes mais célebres do realizador alemão, como em "Aguirre" ou em "Fitzcarraldo", Treadwell entrava numa espécie de desafio à natureza, com risco da própria integridade física, e a rodagem era sobretudo o registo do desafio e da proeza. É o problema quando se vê "Fitzcarraldo", por exemplo: não se consegue deixar de pensar que o filme é apenas um documento pobre daquilo que realmente movia Herzog - no caso, transportar um enorme barco entre dois braços do Amazonas. "Mutatis mutandis", os filmes de Treadwell têm algo em comum: o importante não são apenas os ursos mas o facto de Treadwell estar entre eles. A sua figura não se apaga, está sempre em primeiro plano mesmo, por assim dizer, quando está em fundo ou em "off". E Treadwell (que fala pelos cotovelos) não se cansa de salientar quão arriscada é a sua posição nem de frisar a que ponto a morte (a sua) está à distância de um simples passo em falso.

Pelo menos em parte, portanto, Herzog reconhece-se na atitude de Treadwell: alguém para quem fazer filmes equivale a correr risco de vida e a desafiar as leis da natureza. E, o que está quase no mesmo nível de reconhecimento, há uma cena em que "vê" Klaus Kinski em Treadwell (quando refere, perante um acesso de fúria de Treadwell, que já tinha visto aqueles ataques de fúria e de loucura num "plateau"...). Mesmo o próprio facto de em Treadwell a linha entre a genuinidade e a bazófia ser fina parece ser mais um motivo de interesse para Herzog (que na parte final desmonta alguma da encenação do naturalista).

Por outro lado, Treadwell era um "showman" desconcertante. Boa parte do material compilado por Herzog mostra Treadwell em longos solilóquios (por vezes à beira da histeria) com ursos em fundo. E não fala só de ursos, nem de ecologia, nem da espécie de pouco ortodoxa mística "new age" que está subjacente à sua atitude; fala de tudo, interroga-se, por exemplo, por que razão "as raparigas nunca ficam muito tempo" com ele (num longo plano com a câmara a tiracolo durante uma caminhada, muito parecido, aliás, com um plano do "Gerry" de Van Sant...).

"Grizzly Man" também é uma maneira de perscrutar a personalidade de Treadwell, como se Herzog se colocasse como espectador, e tal como este se deixasse fascinar pela quantidade de indefinições que este homem conjugava: tratava-se de um louco ou de um tipo que sabia muito bem o que estava a fazer? Um palerma ou alguém para levar a sério? Um impostor ou um "puro"?

o horror da natureza.

Mas, para além disto, Herzog não deixa de fazer o "seu" filme nem de convocar os seus temas preferidos - em última análise, "Grizzly Man" é um filme sobre o horror e a violência da natureza, e sobre a perdição a que está condenado aquele que cometa a loucura de se querer confundir com ela. Herzog deixa-o explícito quando, perante um grande plano de um urso (possivelmente o urso que matou Treadwell), a narração, assegurada pelo próprio realizador (num inglês com imbatível sotaque germânico), diz mais ou menos isto: "Onde Treadwell via, neste olhar, afecto e empatia, eu vejo apenas indiferença e quando muito um enfastiado interesse em comida".

Isso é um dos curto-circuitos interessantes de "Grizzly Man", que muito contribui para o insólito do filme: o facto de Herzog, para lá de toda a proximidade que possa sentir pelo gesto de Treadwell, filmar contra as suas ideias. Mas o mais indescritível é o modo como o realizador dá largas à sua célebre morbidez e ao seu não menos lendário sadismo. "Grizzly Man" abunda em momentos que deixam qualquer um de boca aberta de espanto. Por exemplo, uma descrição pormenorizadíssima da morte de Treadwell (e do estado em que ficou o que sobrou do seu corpo) feita por um exuberante médico legista nitidamente apaixonado pela sua profissão. Ou esta pérola de humor negro: Herzog, em frente à tal ex-namorada (produtora executiva do filme, lembre-se), ouve nos auscultadores o registo áudio do momento em que Treadwell foi comido (a câmara estava tapada e não registou imagens); quando acaba de ouvir diz algo como "isto é terrível, prometa-me que vai destruir esta gravação se não ela vai-se tornar num elefante branco no seu quarto"; ela, compungida, acena que sim, entre lágrimas; e depois Herzog não resiste: "e prometa-me também que nunca vai ver as fotografias que o médico legista lá tem...".

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