É assim, mas não como imaginam: narrativa romântica, sim, mas na medida em que abre caminho ao imponderável, na medida em que, como é típico no cinema de Jacques Audiard, a banalidade, atrelada ao realismo mais quotidiano, se vai procurar constituir como algo extraordinário.
É assim, mas não como imaginam. Há uma figura imparável a atravessar a noite, "easy rider" de casaco de cabedal, botas de "cowboy" urbano. Tom é o seu nome - fulgurante personagem para fulgurante actor, Romain Duris -, pinta de escroque, escroque com pinta numa cidade-aquário, nocturna, uma cartografia de pontos luminosos. Podia ser Nova Iorque, mas é Paris, Tom podia ser um "gangster" da mafia, mas o negócio dele é cometer pequenos golpes de intimação imobiliária, dos mais sórdidos (esvaziar sacos de ratos em prédios) aos mais musculados (até ter sangue nas mãos).
Tom é assim, e sendo assim, evoca os heróis da Nouvelle Vague, mais Belmondo que Léaud, em todo o caso, esses heróis que olhavam para a América à cata de ícones, do mesmo modo que Godard ou Truffaut professavam o seu amor à série B americana com referências directas nos filmes. Assim como Belmondo olha para uma imagem de Humphrey Bogart em "À bout de souffle", Romain Duris podia olhar para Robert De Niro ou Harvey Keitel.
"De Tanto Bater o Meu Coração Parou" é mesmo um caso de filiação cinéfila, como os filmes da Nouvelle Vague. É o "remake", muito livre e inspirado, de um título algo perdido que ganhou aura de culto: "Fingers", obra de estreia de James Toback, em 1978, com um Harvey Keitel acabado de sair da experiência de "Mean Streets", de Scorsese (já agora: Toback oferecera inicialmente o papel a Robert De Niro, mas como o actor nunca mais se decidia, acabou por propô-lo a Keitel). Filme "dead-end" (sinal dos tempos, sinal dos anos 70), Keitel interpreta aí um mafioso italo-americano, entre um "cast" de figuras marginais, à procura de saída da nebulosa que é a sua existência, resgatando uma ambição de outrora: ser pianista.
Um "remake" francês de um filme americano é coisa anódina, costuma ser ao contrário (está em preparação um "remake" americano do anterior filme de Audiard, "Nos Meus Lábios", com produção de Barry Levinson), mas quando o produtor de Audiard lhe colocou a hipótese, o realizador pensou "imediatamente" nesse filme que viu em 1978, como explicava ao Y em Maio, durante o Festival de Cannes ("De Tanto Bater o Meu Coração Parou" não concorreu a Cannes, concorreu a Berlim, onde foi o filme maior do festival, mas o palmarés só consagrou a sua banda sonora).
Mas, atentando nas palavras de Audiard nas notas de imprensa sobre o filme, é visível a distância que hoje reserva em relação ao filme original de James Toback. "Quando o vi com o Tonino Benacquista [co-argumentista de "De Tanto Bater...", com Audiard], fiquei a pensar se não teria exagerado quando lhe vendi a ideia. O enredo está cheio de buracos, a história tem imensos picos, mas também quebras muito acentuadas. E há uma certa pretensão cinematográfica que envelheceu mal." Ao Y, explica que "Fingers" é um filme que "raramente é exibido" e que isso "amplifica a memória que temos dele", conferindo-lhe uma carga mítica ao longo dos anos. Mas, mais importante do que ser um "remake", é não ser "o "remake" de um filme de uma época qualquer", como salienta o realizador. "Os anos 70, para mim, foram os anos da minha formação no cinema."
Talvez, com os anos, a memória de "Fingers" se tenha impregnado das memórias de outros filmes dos "seventies" americanos (essa época que continua a fascinar muito boa gente), particularmente os de Scorsese (com quem "De Tanto Bater..." partilha a febrilidade urbana e subterrânea, uma quase nevrose). Perguntando directamente a Audiard: havia, sobretudo, a vontade de retomar esse território cinematográfico?
"Sim. A forma, a energia, tudo o que pertencia verdadeiramente ao cinema que se fazia nessa altura interessa-me e inspira-me. Para o meu filme anterior, "Nos Meus Lábios", a inspiração inicial veio de um filme de Leonard Kastle, "The Honeymoon Killers" [1970]... Em todo o caso, interessava-me o tema de "Fingers"."
tal pai, tal filho (e a mãe).O tema, esclareça-se desde já, é também o da filiação, da relação pai-filho, questão cara a Audiard, que no contexto do cinema francês continua a ser encarado (por vezes, com má-fé) como "filho de". O pai, Michel Audiard, foi, como ele, um notório argumentista, com mais de 100 filmes nos seus créditos. Vê-se como o "tema" faz soar uma corda em Audiard e "De Tanto Bater..." surgirá como catarse, como resposta à pergunta: como é que um indivíduo constitui a sua identidade em função dos modelos familiares?
No caso de Tom, há o pai (um Niels Arestrup entre o repugnante e o patético), homem em queda, e, por isso, a lógica da relação inverteu-se: Tom é agora o pai, o pai é agora o filho em busca de protecção. Quando o filme abre, Tom está do lado dele: o negócio imobiliário, os golpes, a falta de escrúpulos são uma herança paterna, é assim que o pai quer que ele seja. Mas também há a mãe de Tom, mãe morta, um fantasma a quem se ouvirá, numa gravação: "O meu coração bate demasiado depressa". "Link" evidente com o título do filme, evidência de que se Tom está do lado do pai, o seu périplo (que também é de crescimento) levá-lo até às mulheres, a virilidade crua irá ceder a uma sensibilidade que se dirá feminina porque é onde Tom sai à mãe, ex-pianista.
Em tempos, Tom também tocou piano. E se? Quer dizer, e se Tom pudesse ser aquilo que não é? Era também a hipótese que se colocava a Emmanuelle Devos no anterior filme de Audiard, "Nos Meus Lábios", como o realizador reconhece. "São personagens que vão ter objectivos que são verdadeiramente superiores à sua condição actual. A questão é saber se conseguirão obtê-los, como irão obtê-los."
Para isso, Audiard cerra a câmara sobre as personagens. Em "De Tanto Bater...", Tom é um cometa e a câmara é a sua cauda, câmara ao ombro, subjectiva, porque é preciso "ver o mundo como ele vê, e as coisas que lhe acontecem através dele", como "um plano inclinado". Raramente um filme está tão perto da pulsação e do movimento da sua personagem (talvez, só, no tal cinema americano dos anos 70 e em "À bout de souffle"), raramente um filme se cola de forma tão táctil ao seu sujeito. "De Tanto Bater..." é um ritmo, o ritmo de Tom - e, aí, vamos dizer-nos que até isso estava no título do filme, essa percussão, essa musicalidade.
Esta é, portanto, a narrativa de uma transformação, transformação que não é do corpo, mas se vê no corpo, que se faz com o corpo, evoluindo da tensão para a leveza, da vitalidade brusca para o andamento lento das tocatas de Bach que Tom aprende com uma instrutora chinesa recém-chegada a Paris, que o leva para o quarto dela - é onde está o piano, é onde está a luz neste filme de sombras. Por falar em sombras, se o "film noir" se evidencia como território dilecto na filmografia de Audiard, se serve, muitas vezes, de premissa, é escusado reduzir "De Tanto Bater..." a filme de género. "Não digo, quando começo a escrever: "Vou fazer um filme de género". Fico sempre surpreendido quando falam dos meus filmes assim. Creio que são mais filmes que atravessam os géneros."
Vê-se como a transformação é a condição genética dos próprios filmes de Audiard. Em "De Tanto Bater..." há "film noir", mas também "coming of age", filme de fantasmas, filme musical, "trip", metamorfose, e, porque não, uma reportagem sobre o corpo de um actor, Romain Duris. É muito e é muito bom. Façam o favor de seguir o cometa.