A decepção, a primeira grande decepção na obra de um cineasta que ainda não dera um "faux pas", foi o filme seguinte, "O Grande Peixe" (2003), quente e mole, lamechas e açucarado (mas curiosamente o filme dum consenso "institucionalizado" sobre Burton, com apedrejamento de dissidentes e tudo). Se pusermos "O Grande Peixe" ao lado de "Pee Wee"s Big Adventure" (1985), primeira longa de Burton, filme um pouco tosco mas que contém os germes de todo o Burton posterior, até do Burton que agora se estreia, "Charlie e a Fábrica de Chocolate", com toda a franqueza, parece impossível tratar-se do mesmo realizador. Algo mudara em "O Grande Peixe".
Pior - já que mudar, mudam todos -, algo fora traído, como se Burton tivesse feito a negação, o filme-antídoto para os seus próprios filmes. Fomos ver "Charlie e a Fábrica de Chocolate", portanto, com ligeira apreensão: reencontraríamos Burton ou outra vez o seu "alter ego" bonzinho e edificante, apreciador de serões à lareira familiar e historietas da carochinha? Com a ajuda da pouco ortodoxa história infantil de Roald Dahl [ver caixa], é com prazer que vemos, afinal, Burton de regresso. Mudado? Mudado, como ele próprio admite - mas sem traição.
O espectador reparará que algo está definitivamente diferente na maneira como Burton filma a família, neste caso a do pequeno protagonista Charlie (Freddie Highmore) que ganha um bilhete de acesso ao mundo de fantasia - a fábrica - de um fabricante de chocolates, Willy Wonka: são pobres, vivem num barracão numa cidade dickensiana que tivesse sido revista por Michelangelo Antonioni, mas são calorosos e unidos, e o olhar do filme está lá dentro. Não é a família de "Eduardo Mãos de Tesoura", sempre vista de fora, nem é o patético grupo de "misfits" (ou "miscasts") de "Ed Wood".
Reiterando "O Grande Peixe", Burton filma dentro da família. E o cineasta, que foi pai pela primeira vez em 2003 (e vive agora em Londres, com a mãe da criança, Helena Bonham-Carter), admite alegremente que a paternidade o mudou. "Mudei, estou mais alegre, o mundo parece-me melhor, há menos escuridão", diz, num encontro com a imprensa internacional em Londres. Mas, logo depois de dizer isto, desconversa (arte em que mostra ser bastante bom): "Só não sei se a mudança tem a ver com a paternidade ou antes com o facto de agora ver os Teletubbies [série infantil] todas as manhãs".
tim burton: willy wonka sou euWilly Wonka (Johnny Depp), o dono da fábrica de chocolates, também tem as suas questões familiares por resolver. Mas, no seu caso, elas têm muito mais a ver com as que costumavam assombrar as personagens do Burton "pré-mudança". E foram, aliás, o ponto em que o realizador insistiu em fazer acrescentos à história de Dahl: "Quisemos [Burton e o argumentista John August, o mesmo de "O Grande Peixe"] ser absolutamente fiéis ao livro, mas era preciso que Willy Wonka tivesse uma biografia que o explicasse, de outra forma seria apenas uma personagem excêntrica, um boneco".
Isto, a invenção da biografia, resulta na incapacidade de Willy Wonka pronunciar palavras como "pai" ou "mãe" (engasga-se) e em "flashbacks" em que o vemos na infância a carregar uma máscara horrorosa que o pai (um dentista) criou para que o miúdo protegesse os dentes - um pouco de Freud paródico, portanto: privado de chocolate na infância, o Willy adulto tornou-se no maior fabricante de chocolate do mundo. O curioso é que os "flashbacks" (e a máscara) são um "remake" dos "flashbacks" (e das próteses) em que se via o jovem Ichabod Crane de "Sleepy Hollow". Burton explica, à la Flaubert: "O pequeno Willy sou eu. Em miúdo tinha uns dentes enormes e tive que andar com uma maquinaria à volta da cara, de dia e de noite".
Dito isto, para Willy Wonka põe-se a mesma questão que para o protagonista-filho de "O Grande Peixe": aceitar o pai, reconciliar-se com ele. Mas aqui o pai não é o poltrão sedutor "bigger than life" de Albert Finney, antes um indivíduo austero e sinistro interpretado por Christopher Lee (e que um homem que passou a vida a envergar a dentição de Drácula apareça aqui a fazer de dentista, eis uma ironia que nunca será demasiado apreciada).
Entre a família de Charlie e a família de Wonka passam duas abordagens do tema "família" no filme de Burton. Mas há uma terceira, com uma certa componente de "crítica social" (no caso de Burton a expressão pede, obviamente, aspas): é que as outras famílias do filme, os miúdos e respectivos pais que acompanham Charlie e o avô na visita à fábrica de chocolate, são caricaturas horrorosas onde as crianças são produtos hiperbolizados da redoma protectora em que os pais os fazem viver (e as crianças mandam, efectivamente, nos pais).
Confrontado com estas crianças-gremlin, Burton responde: "Mas de crianças horríveis está o mundo cheio! Demasiada informação, demasiadas imagens, demasiado amor, demasiados presentes, demasiada comida, demasiada acção. Submetemos incessantemente as crianças a este excesso. [Da parte dos adultos] corresponde a uma demissão e a um cinismo: uma maneira de as mimar e de não ter chatices".
Sobra Charlie, que sem ser uma criança-cliché é, como diz Burton, "uma criança-alegoria, o único ser que transporta alguma pureza". Mas é ter esta criança idealizada (interpretada por Freddie Highmore, que fora o miúdo de "Finding Neverland" de Marc Forster) como centro motor do filme e "link" para a identificação do espectador (sobretudo do espectador-criança) que permite que "Charlie e a Fábrica de Chocolate" ainda possa ser uma "viagem de maravilhamento" apropriada a uma história infantil.
Subtraindo Charlie, ficava uma galeria de horrores e uma viagem de pesadelo (até porque todas as crianças "feias" são submetidas a requintados exercícios de sadismo por Willy Wonka, como serem sugadas por tubos de chocolate ou atiradas a um gigantesco caixote do lixo...)
Mesmo assim, a fronteira entre o pesadelo e o sonho é estreita em "Charlie e a Fábrica de Chocolate". O Tim Burton visionário e inventivo está em pleno no filme, capaz das maiores transfigurações: das coreografias dos Umpaloompas (ou lá como se chamam os "ajudantes" minúsculos de Willy Wonka), clones digitais do mesmo actor (Deep Roy, que tem um fácies extraordinário), tão bizarros que metem mais medo a um adulto do que a uma criança, passando pela inesperada mas divertidíssima citação do "2001" de Kubrick (com uma tablete de chocolate no lugar do monolito), até chegar à transformação de um grupo de esquilos (aparentemente "queriduchos" como qualquer esquilo) em criaturas de horror - podemos garantir que nunca ninguém filmou um grande plano de um esquilo como Burton aqui filmou.
Os esquilos, já agora, são "verdadeiros", mesmo com retoques digitais; assim como maioritariamente "verdadeiro" é o cenário da fábrica de chocolates (um espantoso trabalho de "set design", diga-se). Burton quis minimizar o emprego do digital por causa daquilo a que ele chama "as texturas", e preferiu a construção em estúdio, em Londres, dum cenário - um "playground" real e tridimensional com que os actores (e o realizador) se pudessem relacionar fisicamente, por oposição a estarem "três meses a rodar em frente a um ecrã azul", coisa para que o próprio Burton "não tinha muita paciência". Um Burton mais "baziniano" que "lucasiano", portanto, pista que não seguiremos aqui mas talvez valha mais do que um mero pormenor.
johnny depp: michael jackson, eu?Mas, e Willy Wonka no meio disto? Willy Wonka, bom, Willy Wonka merecia um artigo inteiro só para ele. Extraordinária personagem, extraordinário "bric a brac" de composição que concilia a linhagem das personagens "burtonianas" com o "programa de autor" do próprio Johnny Depp - e quarta colaboração entre os dois (depois de "Eduardo Mãos de Tesoura", 1990, "Ed Wood", 1994 e "Sleepy Hollow", 1999) como se uma coisa (a linhagem "burtoniana") tendesse para a outra (o "programa" de Depp). É um casamento felicíssimo: o realizador diz que ele é "o ideal" porque "fica todo contente por ter que vestir roupas esquisitas", o actor, mais sério, reconhece "a existência de muitas afinidades, interesses e sensibilidades comuns".
Mas mais do que ser apenas um casamento feliz, gera vida intrigantemente fascinante: Willy Wonka é das coisas mais extraordinárias da carreira dos dois, perfeito exemplo do que é uma personagem "plástica", "compósita", onde tudo (até a psicologia) nasce de "bits and pieces". Traçar a origem desses pedaços, decompor o puzzle, é um exercício irresistível (e, neste caso, dado a algum picante). Em termos burtonianos, esta figura do adulto pueril de (a)sexualidade indefinível tem vários antecedentes - um pouco de "Ed Wood", um pouco de "Eduardo..." - mas vai direito à raiz: há aqui muito do Pee Wee (que foi interpretado por Paul Reubens e era um herói das manhãs infantis da TV americana), mas numa versão mais sofisticada, menos "animal", mais (auto)controlada - um Pee Wee "aristocrata", por assim dizer. E, depois (de modo estranhamente contínuo), surge a "Michael Jackson question", a que vamos já a seguir.
No filme, começamos por ver Willy Wonka como uma relíquia "pop star" - depois de Depp ter mimetizado Keith Richards em "Os Piratas das Caraíbas" quase juramos que passou ao Stone seguinte e foi buscar as roupas e o penteado de Brian Jones circa 1968 (mais os óculos do teledisco de "Jumping Jack Flash").
Depois começa a falar, com voz estudadamente aguda, quase feminina, e a mexer-se, e então, 99 por cento dos mortais lembram-se de Michael Jackson (sem que Willy guinche ou leve a mão à braguilha, contudo). Impressão que fica pelo filme todo, e influencia obviamente a perspectiva sobre esta história de um adulto esquisitóide que convida um grupo de miúdos para uma visita à sua Terra do Nunca (estamos só a falar da de Peter Pan, temos medo dos advogados de Jackson...).
É esta a "Michael Jackson question" com que Johnny Depp tem sido bombardeado: inspirou-se, baseou-se, retratou Michael Jackson? Estava a par das "analogias" que a coisa propiciava? Como é óbvio, Depp fecha-se em copas - significativamente, ouvimo-lo, quando confrontado com a pergunta, responder que "nunca pensou que tanta gente se fosse lembrar de Jackson" (o que não é o mesmo que responder "que nunca se lembrou de Michael Jackson"), desviar a pista para os apresentadores dos programas infantis de TV que via quando era miúdo, mais o seu sorriso constante (e ao jovem Depp esse sorriso "metia medo"). Depois, é salvo (?) por Tim Burton: "Estão a insistir no Jackson errado, de quem nos lembrámos foi da Latoyah...".
O enigma ficará por resolver, o que não impede que a "vox populi" dissemine o boato ("toda a gente" anda a escrever a que ponto Jackson é chamado ao caso de "Charlie"). Por nós, insistiremos na continuidade entre esta personagem "peterpanesca" (nenhum trocadilho pretendido) e eventualmente "jacksoniana" de Depp e a que interpretava em "Finding Neverland" - onde, recorde-se, a encarnação de Peter Pan se fazia por via do seu criador, J.M. Barrie. Em termos de "política de actores", Willy Wonka reequilibra as coisas, é o "lado B", a outra face da moeda, o "lado escondido", ou o que se queira, da personagem de Depp no filme de Forster. Johnny Depp diz que não voltará a ser realizador, ou, "de certeza", realizador e actor ao mesmo tempo (ele realizou e interpretou em 1997 "The Brave", com Marlon Brando).
De facto, não precisa, vai fazendo os seus filmes nos filmes dos outros. Levem-no a sério que ele merece. E levem "Charlie e a Fábrica de Chocolate" a sério, porque este ano não deve haver filme que surpreenda mais, nem, sobretudo, que faça tanta confusão.