Uma das singularidades do que designamos como "América", os EUA, é a capacidade de integração nos imaginários, indústrias culturais incluídas, dos factos marcantes da sua história colectiva. Por isso cabe perguntar como é que só quase quatro anos volvidos surge um filme apreendido, mesmo que erroneamente, como uma primeira metáfora "pós-11 de Setembro".
A natureza do trauma, a extensão da ferida simbólica, foi de tal ordem que obrigou a uma difícil recomposição. Exactamente um ano depois, a produção independente The Guys, baseada numa peça entretanto estreada (informação importante para se atender a que a capacidade de inscrição imaginária foi quase imediata noutros campos), e ainda que centrada nos trabalhos de socorro por parte dos bombeiros, foi de restrita difusão e um insucesso. O mesmo ocorreu, mais previsivelmente, com o filme colectivo 11"09""01.
O que todavia torna interessante o clamor em torno do suposto estatuto pioneiro de Guerra dos Mundos como filme "pós-11 de Setembro" são duas ordens de factos: 1) desde A 25ª Hora de Spike Lee, passando por Sinais e (sobretudo) The Village de M. Night Shyamalan e inclusive Terminal do próprio Spielberg, as reflexões ou alegorias vinham de facto existindo já; 2) foi o sucesso de Fahrenheit 9/11 que veio mostrar à indústria que já era possível fazer face ao bloqueio simbólico, tanto assim que o próprio Spielberg se voltou subitamente para este projecto, interrompendo outro (o docudrama do rapto e assassinato dos atletas israelistas por um comando palestiniano nos Jogos Olímpicos de 1972, que entretanto já começou a filmar), ou que foi dado luz verde a alguns projectos congelados ou novos, que em breve começarão a estrear.
Os factos indiciam não só uma lógica produtiva como sobretudo uma questão de reconhecimento público. O que distingue Guerra dos Mundos é a sua escala de produção e consequentemente de difusão, como também os níveis de "verosimilhança" e sobretudo a pergunta colocada pela pequena Raquel (Dakota Flanning) ao pai Ray (Tom Cruise): "Is it terrorists?"."Terroristas", eis a nomeação que faltava ouvir no cinema americano. Afinal, como em qualquer trabalho de análise, a verbalização do fantasma é parte da identificação do trauma.
Mas é ainda da ordem das questões que o filme de Spielberg faça tal inscrição numa reformulação da narrativa clássica de H.G. Wells. Antes deste filme, a evocação da Guerra dos Mundos remetia de imediato para a emissão radiofónica de Orson Welles, que em 1938 lançou o pânico na América, referência que também não é despicienda neste caso. Mas não se podem negligenciar a própria narrativa de Wells e a sua anterior adaptação cinematográfica.
Como bom fabiano e apóstolo do socialismo, Wells escreveu A Guerra dos Mundos também como reflexão sobre o colonialismo: perante os atacantes marcianos, de superiores capacidades, era também necessário compreender os "porquês", o que significava o ataque, e inclusive o que teríamos também feito para ser alvo - background que, notar-se-á, é aludido no filme por via do trabalho escolar que o problemático filho adolescente de Ray é suposto fazer, sobre "a ocupação colonial francesa da Argélia", além de que o conceito de "guerra dos mundos" foi reactualizado no Choque das Civilizações de Samuel Huntington, que tantos entenderem como profético do 11/09 e programático da linha dura. E já havia sido num quadro de difusa mas intensa luta com um "inimigo" e potencial "invasor", a "guerra fria", que ocorrera a 1º adaptação, em 1953, realizada por Byron Haskins.
A presente Guerra dos Mundos é um filme complexo e brilhante, pelo modo como num reconhecível corpo de referências vem nomear a novidade radical, e com isso torná-la também cinematograficamente reconhecível em larga escala nos imaginários públicos; é também "um filme de autor" em toda a sua singularidade, contudo também de um modo que, uma vez procedido a este outro reconhecimento, do autor, se torna mesmo demasiado óbvio.
Guerra dos Mundos estreou nos Estados Unidos antes do fim-de-semana do 4 de Julho, exactamente 30 anos depois de Tubarão, que lançou o moviebrat e também a vaga dos filmes-catástrofes. E este é o filme do ressuscitado autor da trilogia alienígena Encontros Imediatos do 3º Grau. E.T. e Poltergeist (que ele entregou a Tobe Hooper para realizar, mas que é um argumento seu, e foi por ele produzido). Dos seus filmes recentes, é até o mais caracteristicamente spielberguiano; o quadro dos subúrbios, das famílias divididas e do pai com dificuldades de comunicação, o óbvio parentesco do Ray de Tom Cruise no Roy de Richard Dreyfuss em Encontros Imediatos, a proximidade de Dakota Fanning à Drew Barrymore de E.T., a sequência dentro do Tripod dos invasores ecoando em negro o final de Encontros Imediatos, a única visão de um invasor, morto, no final, moldada no extraterrestre desenhado por Carlo Rambaldi, etc., para já não falar nos contra-picados ou nas gruas que lhe são tão reconhecíveis - ou não estamos a falar de cinema e de um autor?
A notoriedade de Spielberg afirmou-se na capacidade de inscrição singular num imaginário de massas. De algum modo, e ainda que não sem uma previsibilidade programática, talvez fosse preciso a reafirmação de um "grande realizador americano" para enfim haver o encontro cinematográfico que estava bloqueado - a admissão da possibilidade de terrorismo.