Alcácer aqui

Com "O Quinto Império - Ontem Como Hoje" Manoel de Oliveira regressa a tempo inteiro - no tempo de um filme inteiro - à História de Portugal, matéria que já por mais do que uma vez serviu de sangue dos seus filmes. Regressa também a José Régio, depois de "Benilde ou a Virgem Mãe", nos anos 70, e "O Meu Caso" nos anos 80, adaptando agora a sua peça teatral "El Rei D. Sebastião", de que mantém a íntegra do texto.

É um regresso em grande a um cinema "oliveirianamente" puro e duro, próximo daquilo a que se costuma chamar "teatro falado", feito duma coreografia do plano (maioritariamente) fixo e da encenação "materialista" da palavra. O requinte é absoluto e majestoso - e mais uma vez se pede que não se confunda "isto" com qualquer "austeridade": os valores plásticos (a começar no magnífico trabalho da directora de fotografia, Sabine Lancelin) são de uma sensualidade extrema, e a relação das figuras (apetece chamar-lhes assim, mais do que "personagens") com os décores é o eixo que os norteia. No centro, D. Sebastião, figura centrípeta do filme e do espaço do filme: "O Quinto Império - Ontem como Hoje" pode ser uma reflexão sobre a História de Portugal e sobre uma das suas mais fundas mitologias, mas é também um ensaio abstracto sobre o poder e o lugar do poder (e sobre os que, ocupando esse lugar, encarnam o poder). Ou talvez não tão abstracto quanto isso.

Talvez importe sublinhar que não se trata de uma reconstituição. Não há "suspensão da descrença", o filme nunca pretende que nos transportemos para o século XVI (tal como o texto de Régio o não pretende). O olhar é contemporâneo, "ontem como hoje" - e a palavra "hoje" é obviamente a mais importante. Num certo sentido a mais enigmática também, leia-se o título "Ontem como Hoje" como um comentário (como os títulos de alguns quadros) que abre possibilidades de sentidos em vez de as fechar, que obscurece em vez de iluminar. É, aliás, pela obscuridade que o filme começa: as primeiras cenas são todas na penumbra, entre sombras que apagam os corpos e salientam as vozes (e de onde emerge a do rei, ainda apenas voz incorpórea mas voz de poder e de autoridade). Mas ainda antes delas o genérico mostrara um movimento de câmara nocturno pela Janela do Capítulo acima, fazendo todo aquele arsenal simbólico desembocar (ou melhor, embocar) num buraco negro. E depois, um dos mais surpreendentes planos de todo o filme (e um plano de génio): um pequeno traço luminoso cruza o céu sobre Tomar (tudo se passa no Convento de Cristo, com um bocadinho no Mosteiro de Alcobaça para o túmulo de D. Pedro I). Um avião, só pode ser, fabulosa "denúncia" da representação, "sinalização" da contemporaneidade (ou do "hic et nunc", diria o outro). Mais tarde no filme voltaremos mentalmente a esse plano, e o avião transformar-se-á no cometa dos sonhos messiânicos de D. Sebastião - ou seja, artifício, "efeito especial", ou seja, cinema, teatro, representação, como queiram chamar: "O Quinto Império" devolve o sebastianismo ao mundo dos mitos e da ilusão, fabrico de uma mente delirante que contrapõe os seus sonhos e o seu olhar cegado (que vê ele para além da janela do seu domínio? Nada: o único contracampo do seu olhar dá-nos um falso, e magnífico, céu estrelado) aos apelos racionais dos seus conselheiros. Mas como o sonho o comanda, a profecia servir-se-á dele - pelo menos é o que parece decorrer da longa e alucinante conversa com Simão, o "Sapateiro Santo" (Luís Miguel Cintra). D. Sebastião redimir-se-á em Alcácer Kibir, sacrifício para que a História se cumpra e o mito se gere: a lenda fará forte o fraco rei. Num daqueles raccords "secos" em que Oliveira é mestre, a noite passa e D. Sebastião desperta perto do trono: mas estaremos seguros de onde está a verdadeira vigília, e o verdadeiro sono?

Esta alusão a um Portugal quimérico, inconformado mas irracional, em rota para o buraco negro do princípio, está seguramente no filme. Mas "O Quinto Império - Ontem como Hoje" é vasto, não se esgota facilmente. É também um retrato do poder e da megalomania, do delírio como guia de actuação, da irracionalidade que não se reconhece. Oliveira é suficientemente perverso para encerrar D. Sebastião dentro do "interior-cripta" em que todo o filme decorre. Não há mais espaço para além daquele, mesmo Portugal, o "país", não se vê, existe como abstracção, como ideia. Não existe povo, não existe nada: existe o rei semi-louco, existem os seus conselheiros (de quem ele depende, para o bem e para o mal), existem os nobres que o lembram do seu poder (o poder só existe se tiver reflexo noutros), existe a avó (D. Catarina, interpretada por Glória de Matos), e existem os bobos - que (será isto demasiado exagerado?) são aqueles que têm direito a mais planos "a solo" a seguir a D. Sebastião, e os que têm direito a mais planos "de resposta" nos diálogos com o monarca.

Depois existem túmulos e fantasmas - os túmulos que se visitam no princípio, os fantasmas que se soltam no sonho que antecede o fim. Ontem como hoje?

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