Morreu há 100 anos o criador do Zé Povinho

Foi um génio na cerâmica e no desenho, criticando lealmente e sem rancor todos os poderes da época em que viveu. Ainda hoje, as criações daquele que é considerado o fundador da BD portuguesa espantam. Apesar disso, o Museu Rafael Bordalo Pinheiro, em Lisboa, está fechado desde 1999.

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Não só povoa o nosso imaginário, mas também o discurso ideológico e político e, sobretudo, a vida quotidiana dos portugueses desde que foi criado em 1875. Descontadas as devidas proporções, o Zé Povinho português só pode ser comparado ao John Bull inglês ou ao Tio Sam americano.

Rafael Augusto Bordalo Pinheiro nasceu a 21 de Março de 1846, em Lisboa. Era um boémio que desiste tão depressa como entra nas diferentes instituições em que se matriculou - Academia das Belas-Artes, no Curso Superior de Letras e na Escola Dramática. O pai Manuel Maria, preocupado com o rumo do filho, emprega-o em 1863 na Câmara dos Pares, sem saber o que estava a fazer: esse foi o palco ideal para Rafael se aperceber das intrigalhadas da vida política de então e dar-lhe ideias para libertar a sua veia humorística.

Mas a caricatura aparece por brincadeira (Bordalo "dixit") na sua vida. É com "O Dente da Baronesa" que se vai espraiar em 1870 numa folha de propaganda típica da época. Ele próprio confessou: "Comecei a sentir um formigueiro nas mãos e vai pus-me a fazer caricaturas." Para ele, "caricaturas é estragar o estuque de cada um com protesto de senhorio".

O eterno Zé Povinho

1872 marca a entrada de Bordalo no mundo dos quadradinhos (ver texto nestas páginas) e aí, segundo o historiador João Medina, um dos maiores investigadores da figura do Zé Povinho, o artista pode ser considerado "o pioneiro" daquilo a que hoje chamamos banda desenhada com a publicação de "Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa". No mesmo ano sai o frontispício do jornal "Artes e Letras" - e do "Almanach das Artes e Letras" em 1874. Uma das colecções mais significativas enquanto criação, a de "Os Theatros de Lisboa", chega ao grande público em 1875.

Nesse ano aparece o boneco dos bonecos, o herói dos heróis, o eterno Zé Povinho. O boneco que ainda hoje nos continua a perseguir aparece no número 5 da revista "A Lanterna Mágica". Segundo José-Augusto França - estudioso de Bordalo Pinheiro -, "será uma personagem constante. Através da obra de Bordalo Pinheiro, e muito para além dela, até à actualidade". Para o investigador (em "Rafael Bordalo Pinheiro", Bertrand, 2ª edição, 1978), "será (...) imagem e símbolo do povo português, enganado, sacrificado mas refilão, capaz de riso e sorriso nos baldões da história que se faz em ele - mas à custa dele..."

Há, reduzindo um pouco as coisas, dois Zé Povinhos apesar de terem os mesmos objectivos - ridicularizar os poderes, todos os poderes: político, económico e religioso. O primeiro está associado à albarda que significa a opressão do Estado que cavalga sobre todos, e Bordalo revolta-se contra a besta de carga que o povo é. O segundo aparece muito mais tarde, quando o seu autor já está associado à Cerâmica das Caldas (ver texto nestas páginas), e é o mais conhecido dos Zés Povinhos - o do manguito, ainda hoje espalhado por muitas tascas e restaurantes de norte a sul do país. Um gesto que pode ter duas leituras possíveis: um lado mágico para quebrar o mau-olhado que os políticos têm sobre o povo e, porventura, um mais radical, a estilização do sexo masculino sob a forma de uma linguagem gestual, brutal, que exprime de uma forma rude a relação de opressão que os poderes têm sobre o povo.

"O Zé Povinho continua a ser um bom exemplo dos nossos defeitos e das nossas taras: é fundamentalmente um homem de mãos nos bolsos, apático, conformista, desejando apenas menos impostos, menos repressão mas incapaz de ultrapassar o labrego que sempre foi", sustenta João Medina. "Portugal é assim. Basta ver a situação em que estamos a viver hoje a pouco tempo de eleições. Não há outra representação que desenhe tão bem o que somos, os portugueses e Portugal", afirma o historiador.

"Em tudo e de tudo um artista"

A 31 de Julho de 1875, três anos depois do lançamento de "A Lanterna Mágica" o periódico chegava ao fim e, com ele, diz José-Augusto França, "o primeiro período da obra de Bordalo". Tinha cerca de 30 anos e Alberto Pimentel traça-lha o retrato: "Bastos e longos cabelos negros, olhar vivo e incisivo, feições distintas, desembaraço elegante, animação verdadeiramente peninsular." Júlio César Machado é mais incisivo: "Bordalo era em tudo e de tudo um artista."

Mas no ano do aparecimento do Zé Povinho recebe um convite irrecusável para ir para o Brasil e zarpa para o Rio de Janeiro. No "Mosquito", onde colaborava duas vezes por semana, continua a trabalhar debaixo de "stress" - "só à última da hora, quando só dispunha do tempo estritamente necessário para desenhar, metia mãos aos trabalho, tirando o jaquetão inglês, atirando-o sobre uma cadeira (...)". A seguir nascia a criação.

Depois do "Mosquito", trabalha no "Psitt!!!" e no "Besouro", mas a verve de Bordalo não pára de zurzir em gregos e troianos. Mas sempre, como sublinha João Medina, "a sua crítica foi leal no repúdio ao sistema monárquico constitucional - um ódio sem acintes mas lutando sempre pelos ideais republicanos". Enquanto está no Brasil não esquece o solo pátrio e colabora, entre outros periódicos, no "Álbum das Frases", no "Nexis da Língua Portuguesa" e, em de Maio de 1879, inicia a sua colaboração no célebre "António Maria" - dirigido criticamente ao nome grande da Regeneração "António Maria" Fontes Pereira de Melo (que terá duas séries).

O regresso do Brasil

Em 1880, registe-se outro grande momento da sua obra, o "Álbum das Glórias", com desenhos seus e textos de João Rialto e João Rebaixo (a Fragmentos editou em edição fac-similada, em 1989). Pela pena de Bordalo Pinheiro, em desenhos magníficos passa toda uma constelação de personagens como Ramalho Ortigão, o belíssimo Eça de Queirós segurando com a mão direita o seu eterno monólogo, Gomes de Leal com o seu charuto na boca, a bela imagem de Oliveira Martins, e os desenhos deliciosos de, entre muitos outros, Camilo Castelo Branco e o inimitável Bulhão Pato.

Um ano mais tarde, organiza-se o Grupo do Leão, formado por António Ramalho, João Vaz, José Malhoa, Silva Porto, Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro, que se bate pela emergência de uma nova arte em Portugal - o naturalismo.

O grupo reunia-se no Café Leão de Ouro da Rua do Príncipe (hoje 1º de Dezembro), iniciando um ciclo de exposições anuais conjuntas a partir de 1881, as quatro primeiras sobre quadros modernos e as outras de arte moderna. Quatro anos depois, Bordalo homenageia os seus companheiros de estrada com o painel decorativo "Café Leão de Ouro".

Os últimos anos da sua vida (morreu aos 59) são dedicados à cerâmica: é aqui que aparece o Zé Povinho do Manguito. É todo um investimento artístico que não se pode ignorar e há mesmo quem considere que o Bordalo ceramista não pode - nem sobretudo deve - ser separado e muito menos depreciado do do Bordalo caricaturista e desenhador.

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