Miguel Torga morreu há dez anos

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Miguel Torga Alfredo Cunha (Arquivo)

Não foi uma morte qualquer. Como escreveu então no PÚBLICO Eduardo Lourenço, "com a morte de Miguel Torga não é apenas uma referência tutelar da literatura e da cultura portuguesa que desaparece, mas toda uma atitude histórica do criador em relação à Literatura. (...) Torga podia dizer, com razão, que escrevia como quem lavrava a terra." Mais: "Ninguém, entre nós, investiu com tanta paixão e energia na construção da sua estátua interior" que, diga-se, nem sempre foi compreendida pelo mundo que rodeou até ao fim da vida o autor de "Contos da Montanha".

Para construir o seu percurso, Miguel Torga teve que travar a pulso, desde muito cedo, batalhas quixotescas. Nascido a 12 de Julho de 1907, no seio de uma família de camponeses muito pobre de S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes, nem dinheiro havia para entrar na escola primária. Pôs-se, como era da praxe, a hipótese do seminário, mas o pequeno Torga acabou por ir parar ao Brasil, depois de uma passagem por uma casa burguesa do Porto como criado. Profeticamente, resume esta fase da sua vida no que viria a ser uma boa parte do seu percurso literário e existencial: "E fui ficando irremediavelmente sozinho no mundo...".

No entanto, será o Brasil (o destino tem destas coisas), onde trabalhará durante cinco anos numa fazenda de Minas Gerais, a permitir-lhe começar a criar o seu universo. Um tio ajuda-o financeiramente e Torga mostra a sua raça quando regressa em 1925: tira, em três anos, o curso geral dos liceus e, em, 1933 é doutor em Medicina pela Universidade de Coimbra, onde se virá a especializar em Otorrinolaringologia.

Início pela poesia

Literariamente, Torga começou pela poesia e, em 1933, já tinha quatro livros em carteira. Mas os anos 30 são definitivamente marcados pelas avenças e desavenças que constituíram a criação da revista e do grupo da "Presença", com João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca e José Régio. Abandona a revista em 1930, com Branquinho da Fonseca e Edmundo de Bettencourt, e é impedioso, mais tarde, quando escreve em "A Criação do Mundo", porventura o seu título mais conseguido: "Intelectualizados da cabeça aos pés, mal tocavam a realidade. Eram platónicos no amor, teóricos no desporto, metafísicos no convívio."

É com "A Terceira Voz", um livro de prosa, que cria o pseudónimo Miguel Torga. A escolha não surge por caso: Torga é o nome de uma urze de Trás-os-Montes; Miguel é uma homenagem do escritor àqueles que o fazem esquecer Aljubarrota e o Tratado de Tordesilhas. Consequências: desde então, Torga não deixou de ser associado ao legado ibérico e, simultaneamente, a ser carimbado como um autor telúrico (que em ambos os casos o foi...).

Em 1941, instala-se em Coimbra, no Largo da Portagem, num consultório que permanece no activo quase até ao fim dos seus dias. Além de estadas regulares em S. Martinho de Anta, viaja pouco. Quando o fez, em 1936, relata o que vê - "O Quarto Dia da Criação do Mundo" (1939) - e não se sai bem: o livro é apreendido pela omnipresente censura de António de Oliveira Salazar; vai parar à prisão do Aljube, em Lisboa, onde fica preso alguns meses; vê os "Contos de Montanha" (1941) ser também retirado das estantes das livrarias e, como se não bastasse, a sua mulher Andrée Cabrée Rocha é impedida de ensinar na universidade.

Nem tudo é negro, porém, nos anos 40. Publica "Os Bichos" e "Novos Contos da Montanha" surge em 1944 (ainda hoje, talvez, os títulos mais conhecidos do grande público). Mas o escritor não se deixa deslumbrar. Sente, como escreve em "A Criação do Mundo" (V Volume), "um silêncio sepulcral à volta de cada obra que dava a lume." Desafaba mais e sobe a parada: "Era como se não existisse no mundo das letras."

Um monólogo pessimista

Este anátema não passa despercebido a Eduardo Lourenço, que, em 1955, publica "O Desespero Humanista de Miguel Torga e as Novas Gerações". Torga podia escrever e publicar sem parar, mas ia construindo, ao mesmo tempo, "um dos monólogos mais radicais de toda a poesia portuguesa" - um monólogo pessimista que Miguel Torga, quer se queira quer não, cultivou até ao fim.

Pode ter continuado a publicar à velocidade de cruzeiro nos anos 50 e 60, altura em que é pela primeira vez proposto para o Prémio Nobel da Literatura. Os vários volumes do "Diário" (chegou ao XVI) podem continuar a ser devorados sempre que sai um volume (um pouco como acontecerá com a "Conta-Corrente", de Vergílio Ferreira), a sua obra chega à meia centena de títulos, os seus livros podem estar traduzidos em 16 línguas, o Governo em 1978 pode mesmo homenageá-lo por ocasião dos 50 anos da sua carreira literária, pode ter sido o primeiro escritor a ganhar o Prémio Camões, em 1989, ou o Prémio Vida Literára/1991, atribuído por Presidente Mário Soares... Não importa, Torga resiste a tudo e não desarma no seu mundo solitário e pessimista.

O romancista Mário Cláudio acertou em cheio quando resumiu a vida do autor de "Orfeu Rebelde", há dez anos, no PÚBLICO, escrevendo que Torga foi "um solitário voluntário, um exilado no próprio país".

A sua obra, porém, está aí. Para ser lida e, muito provavelmente, para ser descoberta.

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