Há muito, muito tempo...

20 anos depois de "Fanny e Alexandre", o último filme do sueco estreado em Portugal - e aquele que ele anunciou como o seu "adeus" ao cinema -, Bergman, 86 anos, faz-se presente com um filme realizado para televisão (como outros "teledramáticos", digamos para simplificar, que realizou nestas duas décadas), em alta definição, e que só "libertou" para as salas de cinema, depois do sucesso que rodeou a sua exibição em festivais, com a condição de elas estarem equipadas com projecção digital em alta definição (em Portugal isso só acontece com o Millenium Alvaláxia).

Os efeitos causados por esta aparição podem ser descritos assim: "Lembram-se da Harriet Andersson no 'Lágrimas e Suspiros' [1972], morta, e a dizer às irmãs 'Vem cá...'? 'Saraband' tem esta dimensão. É um fantasma cinematográfico. À afirmação 'já ninguém filma assim', a resposta do Bergman é 'eu filmo'. É de uma limpidez devastadora".

Quem fala assim é João Lopes, tem 50 anos, foi adolescente no final dos anos 60 e 70, quando se descobriu espectador ("paradoxalmente", porque, apesar da censura, "foram anos de muitas revelações em Portugal"). Mais tarde começou a filtrar de forma pública, como ele diz, as marcas que lhe deixavam os filmes, tornando-se crítico de cinema. É o que faz hoje no "Diário de Notícias".

"Estive há dias a ver 'Da Vida das Marionetas' [1980]. É incrível, é sempre o mesmo filme, histórias de casais, de ansiedade da morte, de religiosidade difusa mas sempre presente. Para além disso os filmes são iguais na construção. É um cinema evidentemente obsessivo. Isso não é exclusivo do Bergman. Também sinto isso no Hitchcock e no Godard. Nas suas 'Histoire(s) du Cinéma', o Godard diz que o Hitchcock sobrepôs à ordem do mundo a sua própria ordem. É assim o Bergman. E há um valor essencial: o Bergman não cede a modas. Mesmo a utilização do digital: ele encara-o como um instrumento como qualquer outro. Os filmes são objecto de cinema independentemente do suporte..."

Um "flashback" na memória deste espectador: "O Bergman sempre foi o modelo do que era um autor de cinema. Quer no pré-25 de Abril quer nos anos 70 um filme do Bergman era um acontecimento. Era como se Mozart tivesse composto mais uma nova sinfonia."

É o mesmo testemunho de Augusto M. Seabra, crítico e colunista do PÚBLICO. Na sua história pessoal, para ele que cresceu no ambiente de uma "família cineclubista", o realizador sueco "foi o primeiro dos autores de cinema", aquele que ele sabia que existia, tal "como Chaplin ou Disney".

"O que me impressionou em 'Saraband'", diz, "foi o trabalho sobre os rostos, coisa que o Bergman vem afirmando desde os anos 50". Logo nos primeiros momentos do filme, plano fixo, actores a falarem frontalmente para a câmara (para o espectador). E a voz (Liv Ullmann), uma língua que não se conhece mas cujas inflexões, ritmo são familiares... a hipnose pode ser posta em marcha assim, por estes estímulos. "Há de facto um lado especular, de câmara de memória, neste filme, com a voz da Liv Ullmann, e ainda por cima ela está a ver fotografias", reconhece.

"Saraband" aparece como "continuação" de "Cenas da Vida Conjugal" [1973, estreado no cinema Londres em 1976], retomando o casal Marianne (Ullmann) e Johan (Erland Josephson), 30 anos depois. O filme começa com Marianne rodeada de fotografias, que vão ser o princípio de uma divagação pela memória e fantasmas de uma família - a família de Johan, o ex-marido, constituída pelo filho dele, Henrik, e pela neta, Karin.

"É aí, de facto, que uma relação se estabelece", continua Seabra. "A fotografia como materialidade de uma memória. E o facto de o filme se chamar 'Saraband' evocou em mim referências, nomeadamente musicais... o facto de se ouvir a 'Sarabanda' da 5ª Suite para Violoncelo de Bach que é a música do 'Lágrimas e Suspiros'. E a voz da Liv Ullmann, e a identificação da língua sueca... É uma câmara de eco das nossas memórias".

flashback.Deixemos que eles nos atordoem com elas. Com as memórias da descoberta da obra de um cineasta que em Portugal foi feita com as "marcas do interdito", como refere João Lopes. "Quase sempre se sabia o que faltava nos filmes censurados. Lembro-me de um deles, o caso do 'Persona'/ 'Máscara' [1966, estreado no cinema Estúdio, em Lisboa, em 1973], a célebre cena em que a Bibi Anderson conta à Liv Ullmann uma orgia. Não estava cortada, mas o diálogo não estava traduzido. Ou o caso do 'Ritual' [1969; Estúdio, 1974, poucos dias antes do 25 de Abil] que era dos mais evidentes: como havia vários nus, havia várias cenas aos saltos".

Jorge Silva Melo, cineasta, encenador, contribui para a evocação. "Ah, sim. Lembro-me de no 'Mónica e o Desejo' [1953; Império, 1964] as legendas não aparecerem durante uma passagem e os actores continuarem a falar de 'elske' e outras coisas que percebíamos ser amor, sexo... Naquela comédia muito engraçada, 'A Força do Sexo Fraco' [1964; Estúdio, 1973], ficavam os actores a falar entre eles e não havia tradução".

São momentos desta relação afectiva, ou passos decisivos para a idade adulta destes espectadores que depois foram críticos: "Lágrimas e Suspiros" [1972; Apolo 70 e Pathé, 1973] e "O Silêncio" [1963; Londres, 1975], no caso de João Lopes. "Por causa da relação com a morte. Sei que os cineastas que me tocam procuram alguma frontalidade com a morte, não apenas no sentido filosófico, mas formal: é possível filmar a morte e sobreviver a isso? 'O Silêncio' porque vivi e cresci num mundo de muito silêncio, em termos familiares e sociais. É um filme sobre isso, sobre a ausência da palavra estar paredes meias com algo de irrecuperável que é a loucura".

Os primeiros Bergman que Seabra viu foram "Paixão" [1969; S. Jorge, 1971] e "A Vergonha" [1968; Estúdio 444, 1971], numa altura em que o realizador já tinha "aura especial" em Portugal. "Lembro-me que os espectadores faziam comentários do género: o filme tinha 'diálogos muito profundos', o que passou ser a ideia mais divulgada sobre o Bergman". Mas "o grande choque" foi 1973, "Lágrimas e Suspiros" e "Persona", que chegaram com semanas de intervalo. "Foi, num caso, a imponência do Bergman, em todo o seu esplendor, algo de intimidatório até, mesmo que para alguns pairasse a sombra do 'académico'. E depois,'Persona', o choque. Em 1973, Bergman era um dos representantes maiores da modernidade".

A história que conta Silva Melo, 56 anos, só é pessoal nos pormenores, o resto é paradigmático dos modos de recepção a uma obra. "Foram pessoas mais velhas do que eu que descobriram o Bergman no Império, em Lisboa. Lembro-me de a minha irmã chegar a casa das 'matinées' das 18h30 (a hora que os estudantes e intelectuais iam ao cinema nesses pincípios dos nos 60) e falar do Cavaleiro, do xadrez e de morte em 'O Sétimo Selo' [1957, Império, 1963], da malícia dos 'Sorrisos de uma Noite de Verão" [1955; Império, 1960], da estranha beleza de Eva Dahlbeck, Ingrid Thulin e Gunnel Lindblom, a Virgem da 'Fonte ["Fonte da Virgem", 1960; Império, 1961]. Soube o nome dos actores, Gunnar Bjornstrand e Max von Sydow, antes de ter visto o primeiro Bergman. Comecei, como todos os portugueses da minha geração, pelo meio, pelos filmes da 'região central', os 'strindberguianos', os que Bergman escreve e filma ombreando com as peças finais do seu rival e antecessor [August Strindberg, 1849-1912]. E agora sei que 'Morangos Silvestres' [1957; Império, 1960] é uma versão de 'Sonata dos Espectros' de Strindberg, que 'O Sétimo Selo' responde directamente a 'Para Damasco', 'Persona' é 'A Mais Forte'. Só depois, anos 60 dentro, é que no Império, e compreendendo o impacto também comercial desse cinema de autor hermético, se começou a trazer os primeiros filmes, e, teria eu 16 anos, vi então 'Rumo à Felicidade' [1950, estreado em 1966], 'Um Verão de Amor' [1951, estreado em 1963], a maravilhosa 'Mónica e o Desejo', filmes poderosos, com mulheres e homens reais, música, Beethoven, o arquipélago. São ainda os filmes de que mais gosto. Dizia-se que eram filmes de uma época ainda incerta, aparentada com o neo-realismo, mas tremida entre as brumas do realismo poético francês, talvez. Mas cada vez mais as vozes que se procuram me parecem as mais interessantes, aquelas em que a forma ainda é viva e não apenas molde. Esses e aqueles portentosos filmes que o Bergman fez, tão simples, tão de câmara, os tortuosos 'Luz de Inverno' [1963; Império, 1964], 'Em Busca da Verdade' [1961; Estúdio, 1965], 'O Silêncio'. Ele foi gigantesco na sua fase realista. O que mais envelhece é o que mais é parecido com aquelas metafísicas à Virgílio Ferreira, símbolos, relógios sem ponteiros, essas esquisitices. Filmes como 'O Rosto' [1958; Império, 1962], 'O Amante' [1970; Vox, 1972], 'A Vergonha' ou 'O Ovo da Serpente' [1977] são insuportavelmente catequísticos".

Num artigo que escreveu para o catálogo da Cinemateca (ciclo organizado em 1989), Silva Melo já dizia isso, aliás, assinalando a sua decepção perante uma obra que tinha substituído o plano fixo pelo campo-contracampo. Era assim que ele punha e ainda mantém. "É sobretudo o aceitar a vulgata televisiva. Ele que ousava fazer um grande plano sem contracampo passou a ser o hábil gestor do drama interpessoal filmado em campo-contracampo. 'Sonata de Outono' [1978] é típico".

Não que as críticas fossem consensuais (João Lopes, por exemplo, demarca-se de um certo "discurso dominante" no pós-25 de Abril que acusava Bergman de rendição à televisão - "ele é dos cineastas que percebe logo o imenso poder da televisão e que é preciso não nos marginalizarmos em relação à TV e ocupá-la"). Mas marcaram, de facto, a recepção a alguns dos últimos filmes do cineasta. Não chegam a macular, no entanto, a memória de uma obra que, para uma geração, abriu as portas da idade adulta e passou a demarcar - pela simples enunciação de um nome, pelo som das vozes - um território emocional de descobertas e angústias, de sensualidade e de uma cruel clarividência.

"Os filmes de Bergman, como os cigarros Porto, os 'livres de Poche' de Camus, o primeiro LP com Beethoven/Oistrakh [David Oistrakh, violinista, 1908-1974] corresponderam à minha entrada na idade adulta", diz Silva Melo. "Foi o buço cultural, filmes que invocavam a morte e o desejo, a existência de Deus e o tempo a passar, a descoberta da sexualidade. Habituei-me à língua sueca e a descobir o que queriam dizer 'Elske', 'Sommar', 'Gladje', "Med', 'Tyrst', 'Till', habituei-me a um som silencioso e pesado".

E talvez que tudo isso seja a imagem possível de uma era que já não existe, de um cinema que já desapareceu, de um público (e os seus rituais) que se modificou. As primeiras imagens de "Saraband" evocam, então, uma perda?

Alguém consegue imaginar um tempo em que os filmes de um realizador hermético eram os acontecimentos da temporada nas maiores salas do país? Alguém consegue imaginar que o bruá de uma "saison" pudesse ser a cena da combustão da película de "Persona", que fazia espectadores olharem para trás para chamarem a atenção do projeccionista e falarem disso dias a fio como se falou, mais tarde, das supostas ambulâncias paradas à porta das salas que exibiam "O Exorcista"?

"O cinema tinha chegado a um momento em que o seu público era adulto. Foi isso que desapareceu", diz Jorge Silva Melo. O que é que mudou? João Lopes atira uma palavra: "televisão".

"O Bergman, nos anos 70, pertenceu ao modelo dominante da ficção: o cinema. A TV passou a ocupar esse lugar impondo modelos mais medíocres. Isso teve com efeito uma espécie de especialização do público de cinema, que se tornou mais jovem e menos diversificado em termos etários. O que mudou muito, em relação às minhas memórias primitivas de ver cinema, é que, por razões de conjuntura, a maior parte dos espectadores actuais são acidentais. E cujas motivações para ir ao cinema são a visibilidade que os filmes têm na televisão ou nas campanhas publicitárias. É preciso alguma coragem e frieza para dizer que também há maus e bons públicos - no sentido de exercício da capacidade de escolha. Há um mau publico quando há uma relação com o cinema dependente de estímulos meramente acidentais".

um filme de outro tempo. E "Saraband"? Estará arredado de quem não construiu uma relação com uma obra, de quem não passou com ela para a idade adulta?

Augusto M. Seabra arrisca: "Não. O que me toca no filme é precisamente a ideia de transmissão, a herança e renovação. Para mim, a personagem principal não é nem Marianne nem Johan, mas a jovem Karin, a neta de Johan. É na Karin que o Bergman deposita uma possibilidade de futuro. Ela escolhe viver o seu próprio tempo e não aquilo que o avô [Johan, a personagem de Erland Josephson] ou o pai, Henrik [Borje Ahlstedt] lhe sugerem. Não é um filme de um homem velho, é um filme de um homem antigo, qjue é o maior cineasta vivo".

Mas é verdade, reconhece, que é diferente ver hoje um Fellini (é passado, museu, o que se quiser, mas isso pode ser ponte) e "Saraband", que é presente e no entanto...

"Há um lado, neste filme, de estar para além do actual, de não estar conforme o padrão de actualidade, é verdade. Mas a questão é a de saber se a relação que se estabelece com os filmes numa sala de cinema, ao sustentar-se numa actualidade incessante, não nos provoca uma amnésia... Este é um filme sobre a transmissão, sobre a memória. Na sua flagrante inactualidade, é um filme de outro tempo que coloca a cada espectador, e ao cinema, a questão: como albergar objecto tão anacrónico? 'Saraband' não é passado, é presente. Mas não sabemos de que presente vem. Só sabemos que quem fez isto está vivíssimo, e que é um homem e uma sabedoria antigos mas com muito amor para transmitir a paixão da arte e o saber a uma geração mais nova".

Qual é a dose de ironia que estará nestas palavras de João Lopes: "Afinal, o verdadeiro filme de família e para a família é mesmo 'Saraband'"? Não é ironia, como se vê já a seguir: "Para perceber o Bergman é só preciso já ter sentido uma emoção, já ter amado alguém ou alguma coisa. E ter pensado um pouco sobre isso. Há um universalismo no Bergman que não há no 'Senhor dos Anéis' - a questão é por que é que qualquer 'Senhor dos Anéis' tem destaque nos telejonais e não um Bergman? O Bergman fala sobre os problemas que estão nas novelas. O que é que o distingue? A novela é a ditadura da normalização, os conflitos e desenlaces são sempre normais. O que é espantoso no Bergman, e actualísimo, é a recusa desse efeito de normalização: cada ser humano é sempre um ser excepcional. E é sempre um ser de desejo. É isso o mesmo que diz um ser do mundo de Tarantino".

Então, o desafio: "Os espectadores mais jovens terão de construir a sua própria relação com o Bergman. Que nunca será igual" àquela que começou há muito, muito tempo...

Sugerir correcção
Comentar