O Sol de Inverno do nosso descontentamento

Pela consciência dessa diferença, o genérico, um dos mais perfeitos do cinema português, cabe no espaço de uma canção, "Sol de Inverno", cantado por Simone de Oliveira, epígrafe sonora para um tempo (meados dos anos 60), tendo por fundo uma recomposição de velhos documentários de época, imagens do presente da narrativa e um sentido da opressiva presença do passado rememorado. A canção dissolve-se na diegese - "como o sol de Inverno não tenho calor" - e regressamos à palavra com um excerto do início do segundo parágrafo do romance, "Então a noiva que tinha chegado apenas na noite anterior, mas a quem todos já chamavam simplesmente Evita abriu os olhos...", escrito perante os nossos olhos a dar conta da matriz literária sem a impor, instrumentalizando-a ao corpo de uma actriz e ao grande plano do rosto de uma noiva, "fardada" para a função.

Tudo está dado, o grão da imagem marca o tempo, os soldados que chegam, as paisagens deslocam para o espaço da ficção, a narrativa está instalada entre a palavra escrita e a "palavra filmada" por Margarida Cardoso.

Os olhos abrem-se para a hipótese de reconstituir um mundo de fulgor perdido, como na canção, de fim de Império. A voz "off" diz então o texto que estabelece a relação entre as duas protagonistas, a do presente e a do passado ("nesse tempo Evita era eu"), mantendo marcas do literário, quando o filme se apossa das formas e dos contornos visuais. A duplicação funciona porque consegue a verosimilhança de uma reconstituição histórica "quase-perfeita", em que uma visão de presente predomina. Estrategicamente vai-se voltando ao texto literário para não esquecer nem a origem, nem a desconstrução que a voz vai operando nas imagens, como se de dois filmes se tratasse.

o tempo das mulheres.

No centro, desde o início, o corpo, a voz e o rosto da maior acriz de cinema português, uma camaleónica Beatriz Batarda a encher o ecrã de "gritos e sussurros", com Filipe Duarte, enorme revelação, a marcar a mudança de estatuto do humano para o animalesco, e com a presença "animal" de uma fáustica Helena de Tróia - Monica Calle, excelente no seu papel calado de leoa de juba ruiva. Numa sequência fulcral, metáfora da violência contida na acção, aparece o momento de "fazer o gostinho ao dedo", com Batarda aparelhada com um belo estampado de época, representando animais de caça, propiciatória "vítima" de um ritual esboçado de morte sem razão, interrompido pelo voo dos flamingos-rosa. Os gritos na noite e os corpos dos negros envenenados pelo álcool fornecem o pretexto para uma intriga "policial", a que a narrativa da infidelidade de Helena e a história da roleta russa, como vingança para o macho, Menelau de uma guerra sem poder nem glória, conferem o cariz de alegoria para um tempo de perda. Planos longos, a noção atabafante de um tempo que parece nunca mais acabar, espelham-se na revolta surda da personagem da Batarda, nomeando a beleza na raiz do conflito, sem perder de vista as razões políticas de um colonialismo sem sentido.

A partida dos guerreiros para a frente desencadeia o tempo das mulheres, encarcerada Helena na sua "gaiola dourada", ocupadas as outras em infindáveis teias de Penélope, de uma Tróia de África com sons de batuque e rumores de massacres, ao som de cançonetas francesas em voga, com cabelos lisos, "à la Françoise Hardy", engomados ao ferro e os prazeres do mar e do sol.

Depois, dá-se o encontro de Evita com o jornalista e o nascimento de um adultério consentido, uma repetição da história da amiga, numa espécie de representação de uma Madame Bovary dos trópicos, induzida pelo cansaço e pela decepção da guerra e pela queda dos heróis, meros títeres de um genocídio orquestrado à distância. O "romance" com o jornalista permite um olhar de viés sobre a resistência passiva e os bastidores de uma vida colonial, feita de amantes negras, bairros de periferia, cabarés decadentes, destinados a perpetuar a sobrevivência de uma retaguarda artificial.

O que Margarida Cardoso consegue nesta sua espantosa primeira longa-metragem é captar as contradições de um tempo histórico, mantendo-se "fiel" às estratégias narrativas de um romance, mais "sonhado" do que factual. Pelo exasperante decurso do tempo passa a essência da vacuidade dos anos 60 portugueses, a estupidez de uma guerra inglória que destruiu uma geração e hipotecou a possibilidade de fazer o balanço do Império. Mais do que uma reconstituição, revisitam-se atmosferas, medos e revoltas, que reconhecemos, com uma desesperada frontalidade. Figuram-se vinhetas do Inverno do nosso descontentamento colectivo, sem sombra de demagogia ou de imediatista intervenção politica. E, no entanto, o filme assume a responsabilidade política de apresentar um erro histórico, por detrás da ficção de mulheres tristes, num tempo de acabrunhada amargura. É um retrato de corpo inteiro do nosso passado recente, filmado com a urgência de quem prefere a beleza e o rigor à facilidade.

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