O filme é fabuloso, uma obra-prima (de Sjöström e de toda a história do cinema americano) relativamente esquecida que qualquer cinéfilo (ou, para esvaziar as conotações, "amante de cinema") devia (re)descobrir, sob pena de afinal o não ser. E é aliás um filme que, independentemente do seu lugar na obra de Sjöström, atesta muito bem o grau de sofisticação que cinema americano alcançou durante a década de 20, até ao advento do sonoro: em muitos sentidos, nunca houve cinema mais sofisticado do que este, fruto de uma época em toda a concentração recaia sobre a imagem (ainda não havia o som para "distrair") e em que Hollywood era um "melting pot" onde se entrelaçavam e mutuamente influenciavam as mais diferentes sensibilidades artístico-culturais, entre americanos de gema (Griffith, DeMille, Vidor, etc) e europeus emigrados (Chaplin, Stroheim) ou "convidados" por causa do prestígio entretanto adquirido, como Lubitsch ou, para o que nos interessa, o sueco Sjöström.
Figura maior do cinema europeu no início da década de 20, mudou-se para Hollywood com toda a pompa que lhe era devida, contratado por Samuel Goldwyn. Esteve na América cerca de sete anos, traduzidos em nove filmes e muitos conflitos (aliás, mal chegou apanhou logo com o ricochete do caso "Greed", que Stroheim estava então a filmar também para Goldwyn). "O Palhaçi", primeira produção da recém-formada Metro-Goldwyn-Mayer, foi o seu segundo filme americano, com algumas das principais vedetas da época (Lon Chaney, Norma Shearer, John Gilbert), e bateu os recordes do box-office do seu tempo. Para muita gente deve ser difícil de acreditar nisto a propósito de um filme mudo, mas não envelheceu uma ruga - eis quão modernos eram Sjöström e a Hollywood de 1924.
A história de "O Palhaço", baseada numa peça de teatro russa e alimentada pelo pessimismo nórdico que Sjöström trazia dos seus filmes suecos, é até bastante deprimente, e nada tem que se pareça com um "happy ending": é o percurso de um cientista enganado pela mulher e pelo patrono, numa viagem onde o esvaziamento da auto-estima rima com a auto-punição (torna-se palhaço no circo, num número que acaba sempre com ele a ser esbofeteado pelos outros palhaços), que por sua vez conduz à vingança e à expiação definitiva (o final, inacreditável, um palhaço morto transportado por um enxame de palhaços vivos, perante as gargalhadas da plateia). A arena do circo é sempre um espaço abstracto, mental, seguramente mais onírico que realista, lugar dum pesadelo punitivo - é preciso ver porque é indescritível. O preto e branco da fotografia (Sjöström realizou experiências de iluminação que deixaram os próprios técnicos embasbacados) é insuperável, entre o branco muito claro das cenas no circo e o cinzento-escuro muito áspero dos outros decores, e inúmeras trouvailles espalhadas por todo o filme que o afastam de qualquer hipótese naturalista, num cúmulo de sofisticação visual e narrativa que ajudam a fazer de "O Palhaço" um dos maiores filmes da história, tão vivo hoje como há oitenta anos. Perdê-lo não é pecado, é disparate.