OCTÁVIO LOPES DIZ-SE VÍTIMA DE FURTO Numa carta dirigida anteontem à noite ao director do PÚBLICO, Octávio Lopes afirma: “Exmos. Senhores Tenho conhecimento que V. Exas. têm, ou poderão vir a ter, em vossa posse um suporte digital que contém gravações de conversas e entrevistas que mantive enquanto jornalista com diversas fontes ligadas ao processo ‘Casa Pia’. Tais gravações foram-me furtadas, tendo já sido apresentada a competente queixa-crime. Tendo em conta que tais gravações são um instrumento e o resultado do meu trabalho, não autorizo que V. Exas. procedam à publicação de quaisquer notícias que permitam aos vossos leitores tomar conhecimento do teor de qualquer dessas entrevistas e da identidade das respectivas fontes entrevistadas, até porque, como agora comunico, tal suporte é de proveniência criminosa. Com os meus cumprimentos, OCTÁVIO LOPES |
Gravações feitas por jornalista no âmbito do caso Casa Pia agitam meios judiciais
Penalista ouvido pelo PÚBLICO diz que poderá ter ocorrido um crime de gravações ilícitas
As gravações estão a gerar estupefação nos meios judiciais pelo melindre de alguns telefonemas e pelo facto de, segundo apurou o PÚBLICO, alguns dos registos poderem ter sido obtidos sem o prévio consentimento dos interlocutores de Octávio Lopes.
As conversas terão sido transferidos para suporte digital, na sequência do furto das respectivas gravações, de acordo com uma carta remetida para o nosso jornal às 23h42 de anteontem. Octávio Lopes anunciou que já apresentou uma queixa-crime, formalizada ontem de manhã, não obstante o rumor sobre a existência das gravações terem começado a circular na semana passada. Os registos em áudio poderão indiciar eventuais violações do segredo de justiça e outros ilícitos consumados nos diálogos entre as figuras do meio judicial e aquele jornalista.
As gravações contêm demoradas conversas de Octávio Lopes com a inspectora Rosa Mota, o desembargador Adelino Salvado, Catalina Pestana, os advogados Pedro Namora e Adelino Granja. E também declarações prestadas ao “CM” pelo penalista Figueiredo Dias e pela procuradora-geral adjunta Maria José Morgado. É por isso a circulação das gravações está a gerar incredulidade e preocupação entre alguns dos interlocutores de Octávio Lopes, tendo alguns deles, como é o caso do desembargador Adelino Salvado, remetido-se ao silêncio.
O jornalista, numa carta que enviou ao PÚBLICO, exprime a sua oposição quanto à divulgação das conversas e identidade dos respectivos interlocutores. “Tais gravações são um instrumento e o resultado do meu trabalho”, afiança (ver carta na íntegra). No entanto, contactado pelo PÚBLICO, o professor Rui Carlos Pereira, penalista e membro do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), não pareceu dar cobertura à tese do jornalista. “Admitindo que as gravações são ilícitas, ele [o jornalista] apenas é dono do objecto corpóreo [as cassetes]. Quem as levou cometeu o crime de furto, mas isso não significa que as declarações delas constantes sejam ‘propriedade intelectual’ do dono das fitas, no caso de não ter havido autorização para a respectiva gravação.”
Relativamente à exigência de Octávio Lopes de não ser feita qualquer referência à identidade das fontes cujos telefonemas foi gravando ao longo de muitos meses, o membro do CSMP afirmou: “A referência à existência das gravações, isto é, à eventual prática de um crime, não constitui em si mesmo crime algum e pode até servir para nos sensibilizar para situações com algum melindre.”
Nos registos armazenados durante um largo período pelo redactor do “CM” haverá pelo menos uma pessoa que, por três vezes, questionou Octávio Lopes para se assegurar que a conversa não estava a ser gravada, facto que foi desmentido pelo jornalista do “Correio da Manhã”, que ontem se remeteu ao silêncio. E contactada ontem à tarde pelo PÚBLICO, Maria José Morgado confirmou que falou com Octávio Lopes, para lhe prestar alguns esclarecimentos sobre questões de índole jurídica. “Eram declarações para serem publicadas, mas não me foi pedida autorização para as mesmas serem gravadas”, esclareceu Maria José Morgado. “O facto de as minhas palavras serem para publicação não exclui a ilicitude da respectiva gravação sem o meu conhecimento”, acrescentou.
O crime de gravações ilícitas e da respectiva divulgação sem consentimento do visado está previsto no Código Penal. Como esclarece Rui Carlos Pereira, “a existência deste crime pretende defender um direito de personalidade, o direito à palavra (falada), que por sua vez é uma expressão dos direitos à liberdade e à reserva de vida privada”. “Significa isto que, quando alguém fala deve ser livre não só de escolher o que diz, mas também de escolher a quem diz”, acrescenta. “Compreendo que, por vezes, um jornalista tenha a tentação de gravar palavras proferidas por uma ‘fonte’, sem esta lhe dar autorização, até para se defender de um eventual desmentido. No entanto”, alertou o penalista, “o jornalista deve resistir a essa tentação e construir com a sua ‘fonte’ uma relação de confiança — que é ambivalente — e nessa base publicar as respectivas declarações”.
Maria José Morgado diz, por seu turno, que “não se deve confundir um gravador com um bloco de notas”. “Quando tal sucede, o feitiço pode virar-se contra o feiticeiro.”