Bizarrias de um sátiro demiurgo

Quando, a 1 de Maio de 2002, "Cremaster 3" estreou no Ziegfeld Theater de Nova Iorque, há oito anos que o artista estava exclusivamente empenhado em completar (e promover) o épico de que este novo trabalho era a última peça. Em 1994, aconteceu "Cremaster 4". Dois anos mais tarde, em 1996, foi a vez de "Cremaster 1". "Cremaster 5" surgiu em 1997, "Cremaster 2" em 1999.

As estreias, desfile por etapas de um universo pessoalíssimo, povoado de bizarrias fantásticas e origem de inesgotáveis perplexidades, foram construindo o mito: burlão sensacionalista para uns, o maior artista da sua geração para outros - mas sempre um irredutível ícone da contemporaneidade e, por isso, permanente foco de escrutínio. Nada que o deva ter embaraçado, dado o gosto por um espectáculo total de veia wagneriana que o seu trabalho evoca.

Apoiado pelo Guggenheim, que para assinalar a estreia do último "Cremaster" organizou uma megaexposição de circulação internacional com os filmes e os desenhos, fotografias e esculturas com eles relacionados, Barney encerrou com chave de ouro uma "ambition-tour". Depois de Colónia, Paris e Londres, "Matthew Barney: O Ciclo Cremaster" regressava a Nova Iorque com a caução do Velho Continente para a aclamação final. "O génio do sistema", chamava-lhe, com honras de capa, a revista norte-americana "Filmmaker". Só não sabia responder que sistema.

A tentativa de aproximação foi pela negação. Barney não parece minimamente preocupado com o estabelecimento de narrativas fílmicas tradicionais e também não procura reconhecimento em festivais de cinema de referência, como Cannes, na Europa, ou Sundance, nos EUA. Portanto, não está próximo do realizador comum. Mas, ao contrário da maioria dos outros artistas, estreia as suas obras - invariavelmente silenciosas, por vezes violentas, sempre povoadas por criaturas fantásticas - em salas de cinema (em vez de galerias ou espaços museísticos) e faz longas-metragens de imagem real com orçamentos que, se para Hollywood não passam de pequenas produções, para as artes plásticas, onde os ganhos de bilheteira não entram na equação, são quantias elevadíssimas.

Só "Cremaster 3" custou mais de três milhões de euros, numa escalada que partiu dos 100 mil, para o inaugural e visivelmente menos ambicioso "Cremaster 4".

Serve de argumentação, ainda que frágil. Mas não será suficiente assumir que Barney opera numa zona cinzenta de fusão entre arte e cinema? É com esse gancho que o crítico Jonathan Jones, do diário britânico "The Guardian", faz a relação entre o ciclo e um movimento revolucionário - o surrealismo.

As ligações possíveis são múltiplas. Tal como os filmes mais emblemáticos do movimento - "L'Âge D'Or" (1930), mas sobretudo "Un Chien Andalou" (1929), ambos de Buñuel -, o projecto estético-conceptual de "Cremaster" procura uma erotização do mundo físico, uma erotização das relações entre objectos ou entre pessoas e objectos, mais do que entre duas ou várias pessoas.

Como nos filmes do surrealismo - que também fogem às narrativas convencionais, às relações de causa e efeito-, também em "Cremaster" é boicotado o desejo de projecção do público nas personagens. Até porque estas são elas próprias objectificadas, destituídas de verdadeira humanidade, peões de uma engrenagem com uma lógica interna que as transcende.

"Muito do meu trabalho tem a ver com não permitir que as minhas personagens tenham um ego, da mesma maneira que o estômago não tem um ego quando quer vomitar. Simplesmente fá-lo", diz Barney.

Gore

Uma imagem: em vez de um olho cortado por uma lâmina, como em "Un Chien Andalou", um homem com órgãos genitais mutantes a quem partem todos os dentes para fazer engolir uma bola de metal e expulsar pelo ânus parte do seu interior.

Impacto gore? Barney não esconde o seu interesse pelas encarnações e subgéneros do cinema de terror, mesmo as mais "trash", com o regresso de mortos à vida e corpos putrefactos em acção.

Num registo mais contido, há um fetiche: "The Shining", de Stanley Kubrick, a que vai buscar a noção de arquitectura como emanação da ameaça do mal. "Os filmes de terror são um modelo de como uma narrativa pode ser sublimada em arquitectura. Para mim, a arquitectura é a personagem, como o Overlook Hotel de Kubrick. O mal vive nas paredes, e as personagens são quem traz esse mal ou essa energia para fora delas", diz o artista.

Richard Serra e Ursula Andress

Em última análise, é sobre uma vontade de espacialização (e não de narração) que se alicerça todo o ciclo, diz o artista. De resto, antes do esboço de qualquer "story-board" foram escolhidos os locais de filmagem.

Budapeste (para o operático "Cremaster 5"), o Chrysler Building (para "Cremaster 3", o mais referencial dos filmes), as Rocky Mountains (para "Cremaster 2", a história do assassino Gary Gilmore), o Estádio Desportivo de Boise, no Idaho, onde Barney cresceu (para "Cremaster 1", o mais coreográfico) e a ilha de Man ("Cremaster 4", aquele que de mais perto segue o projecto biológico do ciclo, que o autor diz que também deve ser lido como metáfora do processo de divisão celular que leva à definição sexual).

Pelo caminho, revisita-se muita da cultura norte-americana e devora-se alguns dos seus protagonistas - o Pulitzer da Literatura Norman Mailer, a "bond-girl" Ursula Andress, a campeã paralímpica Aimee Mullins e o baterista Dave Lombardo encarnam personagens. Depois, num só episódio, a presença de duas bandas "hardcore" nova-iorquinas - Agnostic Front e Murphy's Law -, bem como uma participação do escultor minimalista Richard Serra. Mitos celtas e aprendizes de franco-maçonaria que sobem andares do Guggenheim como se estivessem dentro de um jogo de computador adensam texturas.

De episódio para episódio, passamos das coreografias de Busby Berkley com as suas linhas de "chorus-girls" para referências ao "western", ao "film-noir". Assumem-se o burlesco e o "slapstick" para depois se evocar a tragédia shakespeareana.

Em "Cremaster" estamos, portanto, num território compósito, em que diferentes universos se misturam numa amálgama indiferenciada. Em que a tradição clássica é atravessada pelo "underground", as referências eruditas são trespassadas pela cultura popular. Por detrás, com um sorriso irónico, um sátiro: Matthew Barney.

All-american-boy

Nascido em 1967 em São Francisco, acabaria por crescer em Boise, no Idaho.

Com divórcio de permeio, a mãe muda-se para Nova Iorque para dar continuidade à sua carreira artística - era uma pintora abstracta.

Barney visita-a com frequência. Mas vive no "campus" universitário - um "all-american-boy", jogador de futebol e candidato à faculdade de medicina que chega a frequentar. Até ao volte-face: opta por estudar arte.

Tornou-se num caso de sucesso meteórico: em 1991, com 24 anos, teve a sua primeira individual, no Museu de Arte Moderna de São Francisco; em 1992 já estava na mítica Documenta, em Kassel, e no ano seguinte na mais conhecida bienal de arte do mundo, a de Veneza.

Desde o início os seus trabalhos exploram as possibilidades do corpo - frequentemente sujeito a situações extremas. A vaselina, um dos seus materiais de eleição, com potencialidades escultóricas inesperadas, esteve também desde sempre presente. Hoje permite a Barney explorar a fluidez entre estados e formas que lhe interessam (do sólido para o líquido, da representação simbólica para a disformidade, do feminino ou masculino para o assexuado...). É o material metáfora da sua obra. Curiosamente, acaba também por remeter para a obra de um dos mais influentes autores do século XX: Joseph Beuys, o fundador do movimento Fluxus. Herdeiro e revisor de algum espírito dadaísta (derivante do surrealismo), também muitas das composições de Beuys, um dos pioneiros da instalação, surpreendiam por associações inesperadas de elementos sem conexão aparente, sem sentido evidente. Certos momentos de "Cremaster" (e esculturas a ele ligadas) citam directamente essa obra. E há a partilha de uma ideia geral de conjugação das forças da natureza e da civilização, do homem e da tecnologia, da arte e da vida.

Cobiçará Barney o estatuto de visionário demiúrgico com que Beuys foi conotado? Coisas de um bizarro Sr. Björk.

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