4, 1, 5, 2, 3

Cremaster 1

É entrar, é entrar. A porta tanto pode ser esta como qualquer outra. Uma certeza: um só "Cremaster" não faz obra, os cinco filmes são como cinco capítulos de uma saga movida pelo desejo. Cronologicamente, é a desordem: "Cremaster 4" foi o primeiro a ser realizado, em 1994, talvez por limitação de meios, "Cremaster 3" foi o último, em 2002, denunciando uma maior sofisticação ao nível da produção.

Não há continuidade narrativa (apenas uma ou outra personagem regressam), mas partilham uma organicidade, deixando a sensação de se estar sempre dentro de um corpo, humano ou máquina.

É entrar, cair, escorregar, ascender, sufocar, perder-se. Fica explícito, em qualquer dos filmes, uma hipersexualização - do imaginário, dos "décors", dos corpos, dos adereços ou esculturas (não será por acaso que o material de eleição é a vaselina). Cronologicamente, é a desordem, mas "Cremaster 1" e "Cremaster 5" até funcionam (estranhamente) como ponto de partida e ponto de chegada, verso e reverso: dir-se-á que ao movimento descendente do primeiro corresponde o movimento ascendente do último. Em "Cremaster 1" estamos no alto: dois dirigíveis da Goodyear estão suspensos sobre um estádio, um e outro tão, tão semelhantes que só a cor das uvas no "centerpiece", entre brancas e vermelhas, deixam escapar a mudança de cenário. Por debaixo, uma mulher longilínea e apertada (espécie de pré-aviso para o Harry Houdini de "Cremaster 2"?) abre orifícios por onde se escapam as uvas, com as quais prefigura as coreografias que, no estádio, vão decorrendo. Os dirigíveis sobrevoam o estádio como a nave em órbita de "2001, Odisseia no Espaço". Busby Berkeley "meets" Stanley Kubrick?

Cremaster 2

Na centrifugadora que é universo de Barney, há de tudo: mitos gregos e celtas, história de arte, coreografias hollywoodianas, "gangster movies", investigação genética, ópera. Comparando com "Cremaster 2", "Cremaster 1" é um filme coeso, o que não significa que qualquer um deles siga uma lógica narrativa. Pela sua pulsão de espectacularidade, o ciclo pode ser, hoje, encarado como a via que o cinema podia ter seguido se não tivesse havido um Griffith para o libertar do "vaudeville" e consolidar-lhe a sua gramática narrativa. Fragmentário e digressivo, "Cremaster 2" (1999) pode ser visto como arqueologia genealógica de Gary Gilmore, "serial killer" do Utah, executado em 1977, e interpretado por Barney "himself". É em torno dele que gravitam outras personagens, como projecções holográficas: os seus pais, que surgem numa espécie de sessão mediúnica com a namorada de Gilmore, entretanto envelhecida (sim, vamo-nos lembrar das máscaras e deformações físicas de Lynch); e, em pleno ambiente de "fin-de-siècle" vitoriano, o ilusionista e contorcionista Harry Houdini, alegadamente antepassado de Gilmore. Presença simbólica, a do escritor Norman Mailer, autor da biografia de Gilmore, "A Canção do Carrasco", enquanto Houdini. É, por assim dizer, o "western" de Barney: o mais investido de uma ideia mítica da paisagem, entre "wilderness" e "no man's land". O deserto de sal, "décor" de filmes recentes como "Gerry" (2002), de Gus van Sant, e "The Brown Bunny", de Gallo, reaparece, ameaçando tornar-se no Monument Valley do cinema americano contemporâneo e, mais uma vez, como etapa final, lugar de morte.

Cremaster 3

É a pergunta inevitável: "Cremaster" é cinema? Arte? Performance? É tudo isto, e a arquitectura de um autor e do seu universo. Nota-se a vontade de inventar cosmologias: como "2001" (Kubrick, outra vez), começa com uma história primitiva. Telúrica: uma mulher-esqueleto ergue-se de debaixo da terra, sob as fundações do Edifício Chrysler, símbolo do modernismo arquitectónico nova-iorquino, monolito evolucionário. Estaremos sempre nas entranhas do Chrysler, como dentro de um corpo. Barney é O Aprendiz, errando pelo edifício, de estrato em estrato, um solitário movido por um destino que o ultrapassa. Mais abaixo, cinco carros clássicos recuperam os desenhos coreográficos das "showgirls" de "Cremaster 1" para cercar e esmagar uma sexta viatura. Uma competição que anuncia o que se vai passando acima, enquanto O Aprendiz tenta alcançar O Arquitecto (outra presença simbólica, a de Richard Serra, ícone da escultura contemporânea). Se os filmes de Barney não obedecem a uma narrativa, uma hipótese possível, e avançada pelo próprio, é a de serem a história dos seus objectos (já agora: há padrões, formas geométricas que se repetem). Ou, como sugere a revista "Filmmaker", o campo cinematográfico de Barney contém elementos tradicionais como personagens, "décors" e paisagens - simplesmente, as suas funções estão trocadas. Ou seja, o "décor" pode funcionar como personagem, como um agente em si - é o caso do Chrysler. O filme do meio pode ser visto como filme-síntese, com o percurso de Barney pelos cinco pisos do Guggenheim. Metálico e megalómano, é o mais longo da série, três horas de duração. Mutação dos corpos, atracção pela máquina, claustrofobia e um apurado sentido obsceno do detalhe convocam Cronenberg. "Cremaster-Crash"?

Cremaster 4

Cada filme possui a sua geografia: aqui estamos na ilha de Man, Irlanda. Gaitas de foles ao alto, um homem-carneiro (Barney, de novo) como dois orifícios protuberantes no crânio faz o seu sapateado enquanto dois "sidecars" encetam uma corrida. Para a galeria féerica e extraodinária, há que contar ainda com três mulheres-faunos. Filme lúbrico, literal viagem ao interior de um corpo: com o seu sapateado, o homem-carneiro vai abrindo um um buraco no qual acabará por cair, sugado por um corredor gelatinoso, mucosa de um mundo do qual tenta escapar-se em vão. Sexo, sexo, sexo. Para cima e para baixo. Explícito.

Cremaster 5

O mais operático. Invocando o barroquismo de um Peter Greenaway, "Cremaster 5" (1997) é concebido como uma ópera lírica, encenando uma história de amor trágica (dir-se-ia: de "sex without touching", como na canção de Björk, companheira de Barney) no ambiente romântico de uma Budapeste de fim de século. Nocturno, maneirista e, porventura, o menos abstracto. Barney reparte-se por três papéis, retomando, entre eles, o de Harry Houdini, escultura apolónea e agrilhoada atirada às águas, Ursula Andress, ex-"Bond girl", é uma rainha vitoriana, ventríloquo da sua própria história, "voyeur" do seu amado reencarnado em fauno, a banhos com uma série de ninfas orientais. Barney leva o seu tempo, demora-se, trabalha o tédio (do espectador). Talvez os seus filmes tenham sempre uma dimensão de competição como espelho do próprio teste de resistência de quem os vê. Por nós, entramos na toca do coelho. "Cremaster", um novo mito pós-Alice para tempos contemporâneos?

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