À bout de souffle

Dentro dos limites da citação e com significativas personagens secundárias - a de Maria João Abreu, a abrir para pinceladas de "realismo", a de Miguel Guilherme (ambos extraordinários de contenção e de força), a puxar pelos cordelinhos controlados do melodrama, a de Ana Zanatti, a evocar o Bergman ritualizado de "Persona" - este "Lá Fora" existe com a rapidez e a vertigem de uma fuga para a frente. A lógica que se invoca é a do esfacelamento da narrativa, das múltiplas narrativas que se encadeiam e anulam. Há momentos prodigiosos de soluções cinematográficas quase perfeitas como o do falso "número musical", em cima da mesa, "contando" o romance de Cyd Charisse com Fred Astaire, em "A Roda da Fortuna" de Minnelli, tudo sinalizado com a certeza de quem não quer evitar o discurso de segunda instância como se de uma coincidência se tratasse.

E, no entanto, parece ser a partir desses apontamentos de "vida em filmes", em estado de graça, que o filme anuncia a sua imensa vulnerabilidade: ao fragmentar-se demasiado, perde várias vezes o rumo, terminando numa morte depois de uma inglória elipse ("A Condessa Descalça" de Mankiewicz ao invés?) que descredibiliza o ténue fio condutor da narrativa. O que acaba por ficar na retina são segmentos soltos de um quase onírico discurso sobre a impossibilidade. E é aqui que entra o "peso" dos diálogos, de João Lopes, a remar contra o aleatório poder das imagens, fazendo de "Lá Fora" um belíssimo "filme falhado", provavelmente condenado desde o início a essa fractura entre o espelho refractor do real e uma necessidade compulsiva de colocar texto e palavras onde apenas os planos, o rigor das imagens fazem inteiro sentido.

Por um lado, aposta-se na ligeireza estílistica e estrutural do melhor Godard, o dos primeiros filmes com Anna Karina; por outro não se resiste a uma retórica que lembra as intervenções de Peter Handke nos filmes de Wim Wenders. Dir-se-á que estamos a forçar a nota da cinefilia prevalecente, mas é "Lá Fora" que abre todos os flancos a essa infindável acumulação de rasuras e de resíduos. Construído sobre as ruínas de um cinema já sem referente, que não o da memória, o filme refugia-se numa espécie de metáfora do mundo exterior (a televisão que Fernando Lopes tão bem conhece), que se fecha como fim em si.

Esta paisagem vigiada faz sentido, mas esfacela-se pela necessidade explicativa (quase redundante) da palavra: o aparato visual (que bem que Fernando Lopes filma os condomínios fechados ou as paredes e os cenários dos estúdios) chegaria para dar conta da incomodidade; o palavreado codificado posto na voz de Alexandra Lencastre e de Rogério Samora fragiliza e "destrói" o efeito claustrofóbico de um "cárcere português" que se queria demonstrar. Exemplar é o longo plano-sequência das duas actrizes (Lencastre e Zanatti), que deriva e atenua, porque parece fazer (e faz) parte de um outro filme, "psicanalítico" e explicativo.

Já a banda sonora cumpre a sua função de intersecção cúmplice com as imagens: a canção de Kurt Weill, "Je ne t'aime pas", vale por mil palavras. O "Nocturno" de Bernardo Sassetti constrói a necessária atmosfera de solidão habitada.

E. se o filme é sobre a falta de ar (no Portugal de hoje, e não só), lembrando apropriadamente o "sem fôlego" do título original da primeira longa-metragem de Godard, "À Bout de Souffle", poderemos dizer que a metáfora contamina o texto fílmico. Para o melhor e para o menos bom.

Sugerir correcção
Comentar