sem imagens
Quando alguém nos pergunta onde estávamos no 11 de Setembro, lembramo-nos de um telefonema de um amigo, de ligarmos a TV e de ficarmos, sem reagir, a ver as imagens do World Trade Center desabar. É interessante que "11'09''01" comece com o episódio realizado pela iraniana Samira Makhmalbaf: numa poeirenta fábrica de tijolos, uma professora tenta explicar a crianças afegãs refugiadas no Irão que "aconteceu uma coisa muito importante no mundo".
Como é que se explica o 11 de Setembro - o atentado mais mediático de sempre - a crianças que vivem sem imagens? "Sabem o que aconteceu hoje?", pergunta a professora. "Sim", responde um miúdo, "dois homens caíram a um poço e morreram". "Não", impacienta-se a professora. Desenhando um relógio sem ponteiros num quadro negro, pede às crianças que respeitem um minuto de silêncio pelas vítimas dos atentados, mas a passagem do tempo é marcada pelo seu dedo. E, para que as crianças imaginem o que é uma torre, leva-as para o exterior e mostra-lhes a torre fumegante da fábrica de tijolos.
Nunca saberemos a imagem que se formou na cabeça das crianças sobre os aviões que chocaram contra as torres em Nova Iorque ("Deus não tem aviões", diz uma delas). Elas não viram as imagens na TV, mas foi sobre o seu país que, semanas depois, caíram as bombas americanas à procura de Osama bin Laden. E foram as vidas delas que mudaram por causa daqueles aviões e daquelas torres.
Méxicoo ecrã negro
Como é que os refugiados afegãos olhariam para o episódio do mexicano Alejandro González Iñárritu, em que o ecrã negro se abre durante instantes para mostrar imagens de corpos a cair do World Trade Center? O episódio é acompanhado por uma banda sonora onde se misturam os gritos daquele dia, os telefonemas das pessoas dentro dos aviões ou das torres, os relatos dos repórteres, num crescendo de som próximo do caos, e que se inicia e termina com cânticos dos índios de Chiapas.
Sabemos o que estamos a ver e sabemos o que estamos a ouvir. Para as crianças afegãs o filme seria uma abstracção, porque não têm as chaves de leitura necessárias, mas talvez lhes transmitisse melhor do que os esforços da professora, o medo, o desamparo perante um mundo que deixou de fazer sentido.
Iñarritu foi o único dos realizadores que optou por mostrar imagens dos próprios atentados. Um risco, se imaginarmos que havia uma saturação dessas imagens (que, aliás, aparecem como pano de fundo, noutros episódios do filme). Mas ele próprio explica: "Usei duas cores [o branco e o negro] e centenas de sons assustadores vindos do mundo inteiro para contar uma coisa que já tinha sido contada". E assume: "queria explorar o sofrimento humano nesse dia, mais do que perder-me durante 11 minutos numa confusão política e retórica".
A escolha foi criticada, o autor foi até acusado de usar imagens de sofrimento de forma experimental. Mas o que se percebe é que qualquer opção tomada podia ser acsuada de "moralmente criticável". É inegável que há um efeito físico sobre os espectadores. Mas isso significa que o episódio é oportunista?
Egiptodiálogo com fantasmas
Ao contrário do mexicano, todos os outros preferiram fazer filmes em que os atentados são o pano de fundo para uma mensagem - para recados aos EUA. A ideia de Brigand era a de que às omnipresentes imagens dos atentados "era preciso responder com outras, de outros países, de pessoas que contassem como é que a tragédia as afectou". Foi o que a maioria fez. E há um subtexto comum aos episódios que diz qualquer coisa como: "há uma razão para o ódio à América". No fundo é uma resposta à pergunta que obcecou os americanos após os atentados: porque é que nos odeiam?
Mas aquilo a que se propõem os realizadores não é fácil. Nenhum deles quer justificar os atentados, todos querem mostrar que partilham a dor e o choque dos americanos. Talvez o episódio mais significativo a este nível seja o do egípcio Youssef Chahine. Foi um dos mais polémicos. Como é que um árabe (o único neste projecto) fala dos ataques aos EUA sem parecer estar a defendê-los, mas, ao mesmo tempo, sem parecer estar a trair o "seu" mundo árabe?
A personagem principal é o próprio Chahine, que começa por desmarcar uma conferência de imprensa sobre o seu filme porque está demasiado chocado com o que aconteceu em Nova Iorque. Mas quando se isola para reflectir, confronta-se com o fantasma de um soldado americano morto num atentado suicida, em 1983, em Beirute. Chahine ouve-o, mas acaba por o atacar, de forma violenta, mostrando-lhe as mortes pelas quais a América foi responsável, do Vietname ao Iraque. Outro fantasma surge: o do palestiniano suicida que participou no atentado que matou o americano.
O realizador egípcio diz, afinal, o que desde o 11 de Setembro grande parte do mundo tem dito: que os americanos têm que analisar a sua política e ver que há razões para que muita gente não goste deles. O discurso não é novo, pode até ser visto como banal pelos europeus, mas é sempre recebido como um choque pelos americanos. Daí as acusações de anti-americanismo que foram feitas a Chahine.
Grã-Bretanhauma carta do Chile
O britânico Ken Loach escolheu um dispositivo semelhante, embora com outro tema: o 11 de Setembro chileno, o esmagamento do regime de Salvador Allende e das esperanças de muitos chilenos, pago com "os vossos dólares". Um exilado chileno em Inglaterra escreve uma carta às famílias das vítimas do 11 de Setembro e conta o sofrimento do seu povo naquele ano de 1973. "Nós iremos lembrar-nos de vocês. Esperamos que vocês se lembrem de nós". O filme é tão ou mais violento que o de Chahine, e é sem dúvida mais realista. Mas é mais "aceitável" pelos americanos (que tiveram exemplos, na Hollywood liberal dos anos 70, de filmes-acusação à CIA em que o indivíduo surge isolado face ao "sistema"), porque a revolta do chileno é contida e não explode de repente, com uma genuína impotência, no rosto de um soldado americano assassinado.
Bósniaos outros 11 de Setembro
Danis Tanovic, da Bósnia-Herzegovina, não acusa a América. Mas diz que existe mundo para além da tragédia do 11 de Setembro. No dia em que, todos os meses, um grupo de mulheres que perderam familiares no massacre de Srebrenica (a 11 de Julho de 1995) se manifesta nas ruas, chega a notícia dos ataques em Nova Iorque e Washington. A maioria das mulheres, de rostos tristes, desiste de se manifestar. Para quê? As atenções do mundo estão noutro lado. Mas uma delas insiste: "Não vêem que temos que ir? Pelas vítimas deles e pelas nossas". A tragédia americana não pode apagar a dor de Srebrenica. O episódio de Tanovic é contra o esquecimento. "Quero falar da Bósnia e da Tchetchénia, quero falar do Ruanda - quero falar de muitas coisas que durante alguns dias estão na primeira página dos jornais e que depois esquecemos".
Israelatentados mediáticos
O tema não é diferente no episódio do israelita Amos Gitai. No momento em que o World Trade Center foi atingido pelos aviões, há um atentado suicida em Jerusalém. Uma jornalista que se encontra no local tenta - caricatura perfeita - fazer reportagem em cima (literalmente) do acontecimento, enquanto os membros das equipas de socorro se esforçam por retirar os feridos e mandar passar ambulâncias. O esforço revela-se inglório porque, apesar de toda a indignação da jornalista, ela não está "no ar". Porquê? Aconteceu qualquer coisa em Nova Iorque, tentam dizer-lhe.
O conflito israelo-palestiniano é o mais mediático do mundo - também existe uma saturação de imagens. Mas cada bomba, cada novo momento de terror, são únicos no seu dramatismo. Ou talvez apenas para os que o vivem. Se calhar acabam por se banalizar no meio do cansaço mediático. Se calhar só um 11 de Setembro faz as pessoas pararem em frente aos televisores.
Índiaa fobia do Islão
Mira Nair decidiu assumir o ponto de vista da comunidade do sub-continente indiano em Nova Iorque, através da história de uma família muçulmana, de origem paquistanesa, cujo filho desaparece no dia dos atentados e é suspeito de ter estado envolvido neles. A mensagem é política: "Queria reagir contra a corrente de fobia do Islão que invadiu o mundo depois do 11 de Setembro". A imagem mais forte é a que mostra as cerimónias fúnebres do filho (que entretanto se descobre que morreu a tentar salvar pessoas dos escombros das torres), numa mesquita, com um caixão envolvido pela bandeira americana.
Burkina Fasoa perseguição a Bin Laden
O único episódio que nos faz rir é o de Idrissa Ouedraogo. O peso da história, do passado e da memória, não assombra África. Não seria fácil para nenhum outro realizador - para o egípcio Chahine; para a iraniana Makhmalbaf - pôr Bin Laden como personagem. Ouedraogo consegue fazê-lo sem que isso tenha uma "leitura": Bin Laden passeia-se nas ruas de uma cidade africana, e um grupo de crianças tenta capturá-lo para conseguir o dinheiro que os americanos oferecem por ele. Assim poderiam ter dinheiro para comprar medicamentos para a mãe de um deles e para acabar com as doenças em África. É uma forma de mostrar que para as crianças no Burkina Faso o importante é ter acesso à saúde e à educação. Bin Laden não passa de um potencial maço de notas de dólar.
Françao silêncio
Japão
a fábula
As histórias de Claude Lelouch e de Shohei Imamura são as que passam mais ao lado do tema ou em que o contexto do 11 de Setembro parece forçado a integrar as marcas dos seus autores: o primeiro conta um momento de ruptura numa história de amor entre uma surda-muda e um nova-iorquino, no dia dos atentados; o segundo faz uma fábula com um soldado que regressa da II Guerra (o japonês escolheu como referência o grande conflito traumático da história recente do seu país) transformado numa cobra. "Não há guerras santas" é a conclusão da fábula.
EUAa dor universal
Como é que um americano escolhe falar do 11 de Setembro, sem ser redutor, sem se repetir, sem ser excessivo e (provavelmente isso preocupou um artista "político" como Penn) sem parecer estar a dizer que esta tinha sido a maior tragédia da história da humanidade? Penn conta a história de um velho que vive num delírio feito de dor pela morte da mulher, que mantém "viva" com rituais só seus. As torres são uma presença tão ténue como uma sombra. É a queda delas que trás a luz que faz renascer as flores, mas que, por outro lado, obriga o velho a ver a realidade. "A dor não é exclusivamente americana", diz o produtor Alain Brigand. Sean Penn, o americano, vem dizer que a dor de uma perda é universal, tantas vezes invisível, e repete-se todos os dias.