O primeiro começou do nada. Nesse filme, os humanos descobriam que a realidade em que viviam era ilusão, um programa de computador criado pelas Máquinas. E assim Neo (Keanu Reeves), Trinity (Carie-Ann Moss) e Morpheus (Fishburne) começavam a revolta contra a opressão da inteligência artificial. E assim se desencadeou aquilo a que já se chamou Matrixologia: uma conceptualização céptica do mundo segundo a qual o que vemos é simulacro, uma amálgama filosófica que formava o ar do tempo e era soprado para a World Wide Web - mundo dos simulacros, na verdade - onde se propagou o culto e se debateu este artefacto pop que também sintetizava o "aqui" e o "agora". Sintetizava o imaginário cyberpunk ou o cinema de kung fu com efeitos digitais que conseguiam num "filme com pessoas" o que só a BD japonesa conseguira - por exemplo, um efeito de câmara lenta, que parecia que nunca víramos antes, o "bullet time", permitia uma suspensão espacio-temporal, ver uma personagem a observar a passagem de uma bala e a evitar o impacto com elegante contorção.
Havia mais: pozinhos de filosofia ocidental, com o Mito da Caverna de Platão em destaque, e um toque de Zen. E até andava por lá "Simulacros e Simulação" de Jean Baudrillard.
Essa mistura dá para encher a silhueta de Larry e Andy Wachowski (que escolheram a invisibilidade e o silêncio, deixando-nos com as intenções: fazer filmes de acção destinados "a fazer as pessoas pensar"). Educados numa família de intelectuais urbanos, de origem polaca, estudaram numa escola para superdotados e representam uma geração que tanto gosta de kung-fu, BD, William Gibson e ensaios de Baudrillard.
Quatro anos depois, chegava "Matrix Reloaded", com a responsabilidade de ser acontecimento. Resultado: integrou tudo o que fora dito e escrito sobre o fenómeno. A filosofia ficou mais óbvia - não se contia o riso perante heróis angustiados pelo fardo existencialista como um "top model" acusa a responsabilidade do guarda-roupa. Mas começava tudo a ser igual a outros filmes de acção. Mais: o que o primeiro conseguira simular, era agora escancarado: o feito dos Wachowski, com a cumplicidade de um mago dos efeitos especiais - John Gaeta - fora, afinal, sintetizar décadas de ficção científica e várias auto-estradas do imaginário mitológico, mascarando novidade com a sofisticação tecnológica. Hoje até se vê melhor: o "bullet time" ("Matrix") até aparecera antes em "Lost in Space", de Stephen Hopkins (97); e a multiplicação de actores por "duplos" criados por computador (os 100 Agentes Smith de "Reloaded"), aparecera um ano antes em "Blade 2", de Guillermo del Toro.
Nada de novo (embora tudo mais perfeito), como as marcas da série "Alien" ou figurinos e cenários com tom medieval como nas "prequelas" de "Star Wars".
É o dilema das "sequelas": ultrapassar a fasquia com sobrecarga. Em "Revolutions" já ninguém quer saber de filosofia, a mística desfez-se em água e tudo se aposta na proeza audiovisual. Sem disfarçar. Como diz uma personagem: "Isto vai acabar como nós sabemos que vai acabar."
"Matrix Revolutions" aguenta-se com dificuldade a ligar dois blocos de acção que explodem com a grandiloquência que permite ao produtor Joel Silver dizer: "'Matrix Revolutions' é monumental." É regurgitação. Lembram-se de "Aliens", de James Cameron, das máquinas e do robô que comandava Sigourney Weaver?
Apareceu algures na net, na estreia de "Matrix", uma citação de William Gibson, autor de "Neuromante" (o livro que se diz ter estado na base da visão dos Wachowski), segundo a qual "o único filme a conseguir passar a noção de ciberespaço ao grande ecrã foi... 'Matrix'". A net é espaço de simulacros, como sabem os libertadores de "Matrix".
Por falar neles: seguir o exemplo dos heróis deveria implicar, para o espectador que julga que escolhe livremente os fenómenos a que deve acorrer, revoltar-se contra a tirania mediática?