Quando Black Mamba acordar, quatro anos depois, e iniciar o périplo de vingança em busca de Bill, o chefe da Deadly Viper Assassination Squad que a traiu (e que é o pai da sua filha), todos vão abrir os olhos - melhor: todas, porque só há mulheres, e vão esbugalhar os olhos. De desejo.
Se há já quem se queixe da quantidade de membros decepados, dos vulcões de sangue, da ausência de narrativa que redima a violência - uma facção da crítica americana ataca "Kill Bill" defendendo "Cães Danados" ou "Pulp Fiction", vendo neles (será que viu isso antes?) filmes em que a narrativa e algumas personagens participam de um sistema moral de controle da violência -, nós não esquecemos os olhos. Como no cinema mudo.
Os olhos abertos de êxtase, cheirando o sangue. "Kill Bill" é "O Império dos Sentidos" de Quentin Tarantino. Estas mulheres com nomes de víboras - Black Mamba (Uma Thurman), California Mountain Snake (Daryl Hannah), Cottonmouth (Lucy Liu), Copperhead (Vivica A. Fox) - correm atrás do seu desejo, como a Sada Abe do filme de Nagisa Oshima (1976). Que só se saciou arrancando o pénis do amante. Para Uma, Daryl, Lucy, Vivica, que correm desenfreadas atrás dos movimentos das suas espadas, não há inimigo real que lhes dê luta; só se medem com o seu narcisismo, a sua sede - procuram o reflexo do olhar na lâmina da espada; sangram, dos olhos, que é onde palpita o desejo. Têm os instintos predatórios que habitualmente é associada aos homens. Uma pausa, então, para as fixarmos: Uma é aquela por quem tudo começou - diz o genérico, o filme é baseado numa personagem criada por Q(uentin) & U(ma) -, é a mulher, a assassina, a amante e a mãe, num fardo só, e assim fará sentido que o realizador tenha já afirmado, no seu delírio habitual, que em "Kill Bill" se tomou por Josef von Sternberg com a sua Marlene (Uma); Daryl Hannah tem um olho só e podia ter só este filme, que por aí já seria lembrada; Vivica A. Fox é mais uma elaboração a partir das heroínas dos "blaxploitation movies"; Lucy Liu, a fabulosa Lucy Liu, fúria de metal debaixo de uma imobilidade de porcelana.
É assim: "Kill Bill" é o filme mais sensual de Tarantino. Aquele em que, pela primeira vez, o realizador americano explicita a relação erótica e mortífera que resulta das manobras do olhar. É uma verdadeira experiência para os sentidos - visual e sonora, e sem os famosos diálogos e trocas de informação sobre a "pop culture" que fizeram a marca de QT. E assim o espectador também fica de olhos abertos.
no mundo do cinema. "Western spaghetti", filme de artes marciais, filme de samurais, "anime" (um filme, de animação, dentro do filme apresenta-nos à luxúria sanguinária da personagem de Lucy Liu). Ainda: Bruce Lee, na série "The Green Hornet" (em que usava a mascarilha negra), David Carradine, na série "Kung Fu", ou Sonny Chiba, o detective ninja de uma série japonesa, "Shadow Warriors".
Mais ainda: os filmes de artes marciais de Hong Kong dos anos 70 (que, por sua vez, já eram influenciados pelos "western spaghetti"). Ou o delírio barroco de um cineasta japonês que cada vez mais se rodeia de culto: Takeshi Miike. E Sam Peckinpah. E Ennio Morricone. E... e...
Referências, memórias, actores dessas referências e dessas memórias (Carradine é Bill, embora só apareça a mão e se oiça a voz - o resto fica para o Vol. 2 - e Sonny Chiba é um picaresco mestre de espadas). Nada de novo, dir-se-ia, é o retrato conhecido de Quentin e do seu mundo de acumulação (houve quem classificasse o filme como um "trailer" feito de referências a outros filmes). Nada de novo? Há algo de novo: o que se descobre em "Kill Bill" é já outra coisa, ao pé da qual a própria ideia de filme-cinéfilo, à maneira de "Pulp Fiction" ou "Jackie Brown", parece já artesanato.
A cinefilia, no realizador de "Cães Danados", sempre foi um jogo pessoal, onanista, regressivo - mas nunca tão fulgurantemente sexual e adulto. Os seus filmes sempre se prestaram a ser mais admirados do que amados (não se pode amar o que não é partilhável). "Kill Bill", pelo contrário, é uma "educação sensorial", é uma cartilha, pronta a experimentar e em várias etapas, das delícias e penas do olhar. Não interessa saber quem é Sonny Chiba e só Quentin viu os filmes que viu - nesse mundo obscuro ninguém entra. Mas interessa sentir que, como espectadores, estamos do outro lado do espelho, num mundo de sensações, imagens e sons, onde os gestos e o tempo se expandem (o filme tem a duração, diz a "realidade", de 90 minutos; mas a intensidade não é a de um épico de três horas?); onde alguém nos conduz o olhar através de uma euforia de puro movimento que acende os sentidos; onde todas as associações são possíveis (uma sequência de um filme de samurais ser insuflada pelos acordes fatídicos do "western spaghetti") porque correspondem a um desbravar de sensações (como Godard na sua "Histoire(s) du Cinéma"? Sim, "Kill Bill" ou história(s) do cinema de Tarantino).
"Os meus filmes desenrolam-se em dois mundos. Um é o Universo Quentin, de 'Pulp Fiction' e 'Jackie Brown' - é distorcido mas é mais ou menos realista. O outro é o Mundo do Cinema. Quando as personagens do Universo Quentin vão ver filmes, as coisas que vêem têm lugar no Mundo do Cinema. 'Kill Bill' é o primeiro filme que fiz que se denrola no Mundo do Cinema", disse o realizador. Antes do final de "Kill Bill Vol. 1", há uma experiência última, a (já famosa) sequência "The Showdown at the House of the Blue Leaves". Nesses 20 minutos que demoraram oito semanas a filmar (ou seja, quase o tempo que Tarantino precisou para filmar "Pulp Fiction"), Uma Thurman defronta Lucy Liu. É um prodígo de montagem, coreografia, "happening". Não é só por isso qué é extraordinário. É-o, sobretudo, porque é uma catarse, êxtase merecido, revelação: quem vê, descobre-se no Mundo do Cinema, descobre-se espectador - e nessa altura, de olhos esbugalhados.