Passa para cá o eyeliner!

Para resumir: quem é que se lembra de "Piratas", de Roman Polanski, e de "Cutthroat Island", de Renny Harlin?

Eis, então, o que precedia "Piratas das Caraíbas - A Maldição do Pérola Negra", de Gore Verbinski (o realizador de "The Ring", filme que também não é grande coisa que sirva de apresentação): uma mistura - que se juraria indigesta e de uma ambição descabelada, porque, jurar-se-ia de novo, só podia fracassar - entre um género cinematográfico morto e comercialmente inviável, o filme de piratas, um "reanimador", Bruckheimer, responsável por monstruosidades de vida depois da morte (confira-se em "The Rock", "Armageddon", "Con Air", "Pearl Harbor"), e uma "estrela" caída do céu.

É por isso que a primeira coisa que se deve dizer é que "Piratas das Caraíbas - A Maldição do Pérola Negra" escapa ao que se esperava (outra coisa se deve dizer: é um sucesso nas várias bilheteiras internacionais). É preciso, claro, contornar algumas dificuldades. Por exemplo, aquelas que continuam a evidenciar que estamos, de facto, perante um produto Bruckheimer, ou seja, um condensado sintético - o (pior) que acontece nas produções Bruckheimer é que apagam qualquer réstia de memória do género que convocaram; dos actores hirtos à câmara robótica, passando pelos efeitos especiais, um filme Bruckheimer é habitualmente uma montagem de vidas artificiais de onde o elemento humano está ausente; parece mesmo não ter tido ninguém atrás da câmara.

"Piratas das Caraíbas - A Maldição do Pérola Negra" tem alguns desses sinais "post-mortem"... mas... não é esta, afinal, a história de um grupo de piratas condenados a viver depois da morte, transformando-se em esqueletos ao luar, por causa de um tesouro amaldiçoado? Ao argumento, da autoria de Ted Elliot e Terry Rossio (os argumentistas de "Shrek", e nomes ligados a projectos de animação como "Antz", "Sinbad"), se deve prestar alguma reverência, porque encaminha o barco em direcção à comédia sobrenatural, e com um humor que assume o género em desagregação. Ou seja, e surpreendentemente, está mais próximo do burlesco doentio de Polanski do que do embuste aventureiro de "Cutthroat Island". Ou seja, e apesar de nas cenas de acção se ter utilizado os serviços de Bob Anderson, o mestre de espadas que treinou Errol Flynn (é inevitável: toda a equipa cumpre o ritual e evoca-o, e a Douglas Fairbanks e a Burt Lancaster, e referencia "Treasure Island", "Captain Blood" ou "The Black Pirate"), a "extravaganza" nunca simula que leva a sério a cinefilia. E como podia, com um pirata como este, Jack Sparrow de seu nome? E como podia, com um actor como este, Johnny Depp?

Ele rouba o filme? Ele torna-se o espírito do filme, como se começasse por o sabotar e desviar e acabasse por o contaminar. Johnny Depp não roubou o filme, Johnny Depp roubou a maquilhagem. Um dos seus tesouros, e o principal deste filme, é o "eyeliner".

desvio.

Eis como a união mais improvável, a de um "blockbuster" pronto-a-servir e a de um actor imprevisível nas suas escolhas e mais próximo do existencialismo à la "On the Road" do que do "meia bola e força" nas bilheteiras, foi a melhor coisa que aconteceu a um filme.

Bruckheimer pensou em Depp porque sentia que "o filme precisava de um actor que fizesse sentir que isto não era apenas um parque de atracções da Disney, que era algo de mais arriscado e negro". Depp, sabe-se lá o que viu, mas viu. Diz-se, até, que é um dos actores com maior capacidade para "ver" para além do que está escrito no argumento ou das pessoas que o rodeiam - num retrato feito pela revista "GQ", escreveu-se que "o instinto de Depp, na arte e na vida, é desviar-se, de forma desafiadora, do argumento". O desvio não garante (no caso dos filmes) que escape ao ridículo (como se viu em "The man who cried", de Sally Potter, ou "Chocolate", de Lasse Halsstrom), mas Depp tem como máxima que um actor não deve ter medo do ridículo - explorando mais a questão: ele diz que "um actor se deve marimbar para tudo, para os seus medos e para o sentido de ridículo", o que o aproxima, claro, do ridículo, tangente que lembra... Marlon Brando, sim, que Depp diz ser seu "professor, mentor e amigo", e que dirigiu na sua estreia na realização, "The Brave" (1997), filme sobre o qual o melhor que há a dizer é que... não teve medo do ridículo.

Voltando aos "Piratas...", a escolha de Depp também teve a ver com nostalgia: o actor lembrava-se do parque temático da Disney da sua infância, quis homenageá-lo e oferecer uma prenda às suas duas crianças (a mais nova das quais, Lilly Rose, é um nome tatuado no coração de seu pai).

Mas nada disto garantia um casamento perfeito. E as coisas começaram até a vacilar quando Johnny se apresentou para a prova de guarda-roupa com a boca a brilhar de dentes de ouro. E com os olhos pintados. Os dentes revelaram-se uma incómoda distracção no ecrã: punham toda a gente a olhar para os dentes e ignorar a personagem. Johnny cedeu, os dentes teriam de ir à vida, mas o resto ficava. É que "o resto" tornava já alguns rostos carrancudos na Disney: "Oh meu Deus, ele usa rímel e 'eyeliner'?" Mas Verbinski e Bruckheimer ficaram do seu lado. O desvio começava aqui: não é estar contra um filme, é levá-lo para outros caminhos.

Não é um pirata como outro qualquer, mas para isso há que dar contexto: Sparrow ficou sem o seu barco, o "Pérola Negra", que foi roubado pelo pirata Barbossa (Geoffrey Rush). Barbossa também não é um pirata como os outros: ele e a sua tripulação estão na posse um tesouro amaldiçoado que os transformou em mortos-vivos, esqueletos ao luar (verão por quê...).

Barbossa quer quebrar a maldição. E Sparrow quer recuperar o barco, mas não há moeda de oiro que interrompa a sua preguiça e seu deleite pelo seu próprio mito. Nem há sexo que valha o mito - ou um pedaço de maquilhagem. Questões práticas: Depp, 40 anos, concebeu o seu visual pensando em Keith Richards - porque "os piratas eram as estrelas rock dos seus dias" (e assim sublinha o que há de "camp" na presença do Rolling Stone) - e nos tuaregues, com as suas sombras à volta dos olhos, marcas numa pele à mercê dos elementos.

Sim, este é um filme salvo pelo "camp" - o que não é nada de novo quando se trata de Johnny Depp, que ao longo da sua carreira tem feito coisas estarrecedoras com a cara e com o corpo, como "Benny & Joon" (1991) e "Eduardo Mãos de Tesoura" (1991), em que o seu rosto tinha o silêncio autoconsciente do burlesco da época do mudo, ou "Dead Man" (1995) e "Don Juan de Marco" (1995), em que a câmara de filmar encontrou nele o mistério exótico de uma ave do paraíso.

Este é um filme salvo por Johnny Depp, que o desviou com tudo o que vai a bordo (Geoffrey Rush nunca foi tão suportável), e assim insuflou vida num habitual espaço de desolação.

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