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O caso John McT

Quando alguém classifica desta forma o seu local de trabalho - "está algures entre um combate de cães e a corte de Luís XIV..." - anda conformado no seu desespero ou então está à beira de se despedir. Sem desvalorizar nenhuma das duas teorias, pode-se divagar que no caso de John McTiernan ele optou por uma outra hipótese: vive longe de Hollywood (é esse o local de trabalho de que se fala). Vive longe, porque vive noutro estado que não o da California, e porque vendo os seus filmes, poderíamos jurar que ele se refugia num mundo à parte de planos, coreografias e outras guloseimas (a expressão é dele, e já lá vamos...).

Isto serve para introduzir o estranho caso de John McTiernan. Que foi um rapaz que, nos anos 70, quis ser encenador teatral (descobriu que não tinha vocação suficiente), e que depois de ter percebido que para seguir via artística o melhor era juntar-se a um grupo de cineastas independentes porto-riquenhos, e como nunca antes se interrogara o que era um filme, se fechou em salas de montagem a ver e a rever, vezes sem conta, filmes europeus, como "A Noite Americana", de Truffaut (ver repetidas vezes um filme tem como resultado a história desaparecer nas brumas do esquecimento, cedendo face à abstracção que se instala, e só ficar o movimento).

Isto, se fosse um filme, seria o pré-genérico. No genérico, já John McT apareceria, anos depois, como reinventor do cinema de acção. Foi em 1988, chamou-se "Assalto ao Arranha-Céus", foi um "blockbuster" e o realizador já afirmou que nesse filme quis introduzir no género "action movie" uma "câmara expressiva", como um narrador, como um comentário, tal como ele vira "no cinema europeu" (aliás, mesmo na fase em que andou a filmar publicidade, McTiernan às vezes pensava em Bertolucci...).

O equilíbrio precário entre o que ele queria fazer e o que os outros queriam que ele fizesse foi sempre um dilema, coisa que à distância de uma sala de cinema não era de todo perceptível. Sobretudo quando as salas estavam cheias. Mas a corda partiu-se em "O Último Grande Herói", um delirante "parque temático" sob o tema Arnold Schwarzenegger, que foi um fracasso, e partiu-se várias vezes depois ("O Último Viking"/ "The 13th Warrior" e "Rollerball", que tiveram problemas de argumento e interferências na montagem). De tal forma - é este o caso - que John McT às vezes aparece como comandante de um paquete (era isso "O Caso Thomas Crown"), como às vezes parece que foi obrigado a entrar numa canoa a afundar. Às vezes aparece, às vezes desaparece, como Thomas Crown, como um truque de magia. Como John McTiernan?

Outra forma de vermos este caso: entre sucessos e azares, entre autor de "blockbusters" e cineasta "maldito", nos filmes fica sempre aberto o campo à magia. Mais: quanto mais se fecha o campo de hipóteses, quanto mais os filmes parecem destinados ao falhanço ou quanto mais sinais de perdedores trazem (é o que tem acontecido nos últimos tempoa), mais consciência também carregam de que tudo é fugaz e ilusório no cinema. É tudo um jogo, era o enebriante e trágico lema de Thomas Crown. Apetece ver assim John McT, com uma varinha de sedutor trágico refugiado nas ilusões que cria. McT não desmente. Numa entrevista abriu o que lhe ia na alma, e descreveu-a "um abismo de negrume. Sou dez vezes mais cínico e desesperado, quanto ao futuro do homem, do que a pessoa mais cínica e desesperada que encontrarem". Por isso, o cinema só pode ter para ele um objectivo "moral: durante uma hora e meia, fazer desaparecer o negrume. Oferecer uma guloseima". Veja-se "Básico".

paraíso infernal.

Tem estrelas (John Travolta e Samuel Jackson), um argumento que muitas vezes cede (mas o que é isso da verosimilhança?) e que outras vezes precisa de "despachar" para a acção avançar. Percebe-se que não foi gasto dinheiro em excesso no "thriller" (não foi sequer aposta) e quem espera ver, entre Travolta e Jackson, um "remake" de "Pulp Fiction", esqueça, porque os dois mal se cruzam na mesma cena. Ou seja, sinais de projecto "problemático" ou "menor".

E no entanto... há aquele micro-clima de paraíso infernal que se instala nos filmes de McTiernan (e não é só assim por parte do filme se passar nas florestas do Panamá; é assim em qualquer décor, até em interiores, dos filmes dele, porque qualquer espaço é filmado como um decisivo "huis clos").

Então o "thriller": um grupo de "rangers" sai em missão de treino com um instrutor, um cruel e temido instrutor (Jackson), mas só dois regressam, os outros estarão mortos, na selva. O que se passou? Vingança? Complot?

Os sobreviventes não estão dispostos a cooperar com a comandante local da polícia militar (Connie Nielsen), e por isso o comandante da base chama um agente federal, que está suspenso por suspeita de corrupção mas tem fama e modos de eficaz interrogador (Travolta, na sua faceta mais carnívora, estilo "Face Off").

Já se percebe que o "thriller", e a selvajaria do que aconteceu na natureza, é o eco de outra coisa igualmente aguerrida: o confronto do par, as manobras de acasalamento entre o maduro Travolta e a masculinizada Nielsen, em décor interior, enquanto a chuva cai lá fora. Quanto a isso, McTiernan é incapaz de não fazer um plano, um movimento de câmara ou um enquadramento que não seja um pequeno acontecimento sensual - são as guloseimas de que ele fala.

A maior delas fica reservada para o fim, quando afinal se descobre que ninguém é quem era, que tudo no paraíso do cinema é, irremediavelmente, um jogo infernal, e só John McTiernan é que se confirma como um ilusionista - um daqueles cineastas que atira as convenções ao ar... para as voltar a apanhar.

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