É verdade que o cinema inglês - até por razões que se prendem com o estado das políticas e estruturas de produção - precisa desesperadamente de uma "esperança", de um caminho que escape ao círculo vicioso das adaptações de Oscar Wilde, dos dramas das "upper classes" em versão BBC, ou das mil e uma reformulações do "realismo britânico". Precisa, em suma, que apareça alguém novo que faça coisas novas, contrariando a tendência para a repetição que sempre foi a do cinema inglês - o famoso dito de François Truffaut sobre a incompatibilidade entre os ingleses e o cinema tinha algo que ver com isso, e tal ideia atravessa periodicamente o espírito dos próprios ingleses.
Seria difícil fazerem-nos apostar uma grande quantia em Lynne Ramsay (há dez anos atrás também queriam que apostássemos em Danny Boyle...). O melhor que a imprensa inglesa tinha a fazer era deixá-la em paz em vez de, como habitualmente, subir a fasquia das expectativas a níveis que quase garantem uma decepção futura. Não obstante, o que é curioso em "A Viagem de Morvern Callar" é que se diria ser um filme tomado precisamente pela preocupação de quebrar um invólucro e conquistar uma liberdade mais ampla do que a que possuía à partida. Por outras palavras e de maneira mais simples: parece um filme inglês a tentar encontrar um modo de não ter que ser inglês.
Num certo sentido, a "viagem" de que fala o título português (o original é só "Morvern Callar") não só se aplica ao percurso da protagonista como acaba por rimar o movimento para fora que também parece ser o de Lynne Ramsay: começamos num aparente estereotipo do realismo britânico (a história de uma caixa de supermercado numa Glasgow obviamente proletária), acabamos num registo semi-onírico ou pelo menos parcialmente "destacado" do registo realista do início, ao sol de Espanha e com uma personagem que de um dia para o outro se tornou milionária.
Terá Lynne Ramsay ideias suficientemente fortes para suportarem esse movimento? Essa já é outra questão, de mais difícil resposta. Há uma ideia de dor a percorrer o filme, como se qualquer processo de libertação a implicasse, mesmo que as características baças da personagem de Morvern (Samantha Morton) suprimam qualquer hipótese de retrato psicológico - o permanente ricochete entre ela e a câmara, mais a sua obstinação, às vezes trazem à memória a Esther Kahn do filme homónimo de Arnaud Desplechin. Mas há, talvez, uma propensão contemplativa em excesso (mais evidente na segunda parte), como se Ramsay quisesse insistir apenas e só no carácter absolutamente fugidio com que Morvern se apresenta ao espectador. Nalguns momentos, acerta em cheio: a melhor cena do filme é a visita ao cemitério espanhol, espécie de encontro de estranhezas a rimar a estranheza que a própria ideia de luto tem neste filme (Morvern, convém explicar, deixou em casa o namorado morto, suicida da véspera de Natal).
Mas é um filme que procura uma aura de "inclassificabilidade", e de alguma maneira a encontra, mesmo se parece inconclusivo quanto à pertinência de uma "aposta" na sua realizadora. Que nalguns momentos revela, é certo, um considerável talento para a construção visual de ambientes: toda a abertura, com o corpo do rapaz morto, o écran do computador e as luzes da árvore de Natal, é bastante boa.