Lars von Trier é um fóbico assumido e diz que os seus traumas se devem ao facto de ter crescido numa comunidade "hippy" sem regras. Foi comunista, os seus filmes são católicos, tal como o realizador hoje em dia. Por causa disso, de há algum tempo para cá, o seu cinema tem feito irromper personagens femininas sacrificiais, como se elas fossem o instrumento de uma vontade superior. Há muita culpa e redenção.
"Dancer in the Dark" é o terceiro "opus" de uma trilogia votada a mulheres mártires, a Golden Heart Trilogy, cujo primeiro filme foi "Ondas de Paixão" (Emily Watson sacrificando-se pelo marido e gerando por isso rebuliço entre as feministas), e o segundo "Os Idiotas" (uma mulher era obrigada a entrar para um grupo de libertários iconoclastas). Agora é a cantora islandesa Björk na pele de uma operária checa na América dos anos 60 que se sacrifica para que o filho não fique cego, como lhe aconteceu a ela. A realidade é trágica e Selma (nome da personagem) refugia-se no mundo fantasioso de "Música no Coração".
Não será perverso uma tragédia ser um musical? Lars von Trier sorri. "Não sei. Inspirei-me na ópera e as óperas têm essas duas coisas. A música é um bom suporte de emoções, desde que se aceite que as personagens cantam em vez de falar."
Falar em "musical" é criar expectativas que podem, depois, dar origem a reacções exasperantes. "Dancer in the Dark" é um desses casos. Musical ou antimusical para destruir as convenções do género, o que quer que seja, foi filmado com a câmara ao ombro (Von Trier, ele próprio, sozinho no "plateau"). Nos números musicais, os planos são estáticos, como se captassem um "show" ao vivo de uma associação de teatro amador, e dá-se apenas uma ligeira saturação da cor, na passagem para o "sonho". Para além do mais, os intérpretes - excepto Björk - parecem visivelmente atordoados com o método de improvisação, como se pedissem licença para entrar num filme que os exclui e que só tem olhos para Björk. Catherine Deneuve, por exemplo, que interpreta a fada protectora de Selma, dir-se-ia que está a ser filmada por uma câmara à espreita apenas dos seus gestos inadvertidos.
Mas "Dancer in the Dark" é, de facto, diferente de tudo o que se fez antes (embora não se deva esquecer que Jacques Demy já por aqui andou, nessa integração do artifício musical no quotidiano da realidade, com resultados sublimes, como era o caso de "Une Chambre en Ville", musical com agitação laboral e proletária em pano de fundo).
Von Trier gosta de ser pioneiro e está sempre em busca de uma pureza, mesmo que ela seja, como aqui, inteiramente artificial. Para a sequência musical mais elaborada, num comboio (evoca o musical "Sete Noivas para Sete Irmãos"), usou 100 câmaras de vídeo fixas, embora diga que teria precisado de mil para conseguir a "sensação de real" que pretendia. É na busca dessa sensação, desse confronto entre o "artificial" e o "real", que se reflecte a sua maneira, assente no improviso, de trabalhar com os actores. "Vou cada vez mais nesse sentido, procurar o que está realmente a acontecer", diz, "especialmente com os números de canções e dança. É este o futuro, se falarmos do futuro do musical."
Mas será que ele gostava suficientemente do "artifício" do género para o poder corromper com as ferramentas da "realidade"? A experiência "musical" de "Dancer in the Dark" às vezes é decepcionante, como uma crueldade que nos é imposta.
"Dancer in the Dark" não tinha ainda ganho a Palma de Ouro, quando o realizador, jovial, se encontrou com a imprensa no elegante Hotel du Cap, a meia hora de Cannes, onde estacionara a "roulotte" que trouxera de Copenhaga - viajar de avião é um das suas fobias. Björk estava noutro sítio - não deu entrevistas e só apareceu para a cerimónia dos prémios, de onde sairia coroada como melhor actriz.
Von Trier pediu inicialmente a Björk que escrevesse a música do filme, mas depois convenceu-a a "interpretar". Não conhecia a cantora, nem a música (os seus gostos ficam-se pelos Abba), mas um dia viu o vídeo de "Its oh so Quiet", realizado por Spike Jonze, e soube das intenções de Björk de fazer uma comédia musical com o americano. Soube também de um episódio, ocorrido no aeroporto de Banguecoque, em que Björk, viajando com o filho, foi "assaltada" por fotógrafos e defendeu a criança da curiosidade alheia com unhas e dentes. Von Trier tinha encontrado Selma.
"Enviámos o argumento para Björk", recorda Von Trier, "porque havia uma série de coisas sobre Selma que eram parecidas com Björk. Depois reescrevi-o para ela. Tal como Selma, ela passou um ano numa fábrica de peixe na Islândia a ouvir os ritmos das máquinas e a fazer música a partir deles. Ela tem um filho de 11 anos e viu Música no Coração 20 vezes", diz, rindo.
Este musical teria agradado aos pais de Von Trier? "Não sei se os meus pais gostariam, mas, na avaliação que faço de outras pessoas da geração deles, diria que sim, por causa destas coisas do comunismo, porque o filme supostamente terá uma atitude crítica a observar os americanos. Pelo contrário, detestariam Ondas de Paixão por causa do carácter religioso."
A educação de Von Trier é das mais invulgares. "Era tudo muito livre, as únicas coisas que eram proibidas eram os sentimentos, a religião e o prazer. O sexo era livre desde que não se tivesse prazer."
Sado-masoquismoNão é coincidência o facto de nos seus últimos filmes ter posto as protagonistas femininas a fazer sacrifícios, pois não? "Em primeiro lugar é um filme, certo? Portanto, não se trata de obrigar uma mulher a desistir da sua vida pelo filho. Hum," faz uma pausa. "Isto é uma pergunta a que respondi centenas de vezes." Recordamos-lhe que "Dancer in the Dark" é parte de uma trilogia... "Sim, sim, eu sei, sei isso tudo. A culpa é minha. Estou a tentar pensar nisso. São mulheres, é verdade. Fiz uma análise e vi que todos os meus filmes são sobre pessoas que têm ideais e que entram em choque com o mundo real. Sempre que há um homem, ele esquece-se dos ideais e, sempre que há uma mulher, ela mantém os ideais todo o tempo. Os homens encontram uma solução lógica, ou seja, o compromisso. As mulheres, e isto é terrível de dizer, reagem emocionalmente."
"Acima de tudo," observa, "achei interessante entrar num género como o melodrama, que era proibido quando eu era criança. É um género pelo qual não sentia nada e quis investigar, ver se havia algo interessante para contar. É o tipo de história que não se aceita, se se vir escrita em papel. Em Magnificent Obsession, de Douglas Sirk, o protagonista atropela uma senhora de idade, que fica cega e então resolve estudar Medicina, forma-se e recupera-lhe a visão e casa com ela, apesar de ela ser 30 anos mais velha. É interessante fazer uma história destas e conseguir torná-la aceitável para seres humanos pensantes", acrescenta, rindo.
"Se se tem uma reacção emocional com uma personagem deste mundo de clichés, é forçoso admitir que existem poderes no melodrama. Para mim, neste momento, está a ser bom fazer melodramas."
O melodrama, o mais sublime, é sempre manipulador e hipnótico, mas poderá ser menos admirável verificar como em "Dancer in the Dark" o realizador, nesta pulsão melodramática com que vai experimentando a sua reconstrução emocional, sacrifica tudo - até a narrativa, como a forçada sequência de tribunal que condena Selma -, só para imolar Björk no altar. De tal forma que um sentimento de falsidade se desprende do filme, mesmo que o fogo entre os dois egos (o de Björk e o do realizador) seja devorador.
Falou-se muito da forma como o realizador atormentou a actriz. "Ela também me atormentou, foi uma experiência sado-masoquista dupla." Os dois são parecidos, admite. "Nenhum de nós tomou qualquer decisão na vida desde os sete anos de idade, pelo menos uma decisão onde tivéssemos de cooperar com alguém. Mas, mais do que isso, a dificuldade de trabalharmos juntos residiu no facto de que Björk sentia o peso de toda esta tragédia, foi tão penoso para ela que tive de ser eu a arrastá-la até ao fim e isso criou tensão. Ia dar problemas, sabíamos desde o começo."
As relações já estão menos tensas? "Sim, daqui a uns anos podemos ser amigos." Trabalharem juntos de novo? "Duvido. Acho que ela não volta a trabalhar comigo."
Helen Barlowe
Vasco Câmara