Subsidiariamente, "O Estado das Coisas" vem lembrar que Wenders já foi um grande cineasta - teve, pelo menos, momentos em que o foi, este filme prova-o. Estávamos a precisar de ser lembrados disso, tal o actual "estado das coisas" (perdoe-se a graça fácil) do cinema do realizador alemão, cada vez mais redundante e circular, incapaz de encontrar saídas para a encruzilhada em que já há vários anos entrou (sabemos que esta opinião não é consensual, mas "quand même"...).
O que torna as coisas verdadeiramente curiosas é que "O Estado das Coisas", a termos que lhe definir um tema aglutinador, é um filme sobre o impasse, sobre vários impasses. Não espanta - e hoje é possível perceber isso - que faça figura de filme-charneira na obra de Wenders, obra de transição que marca uma passagem entre dois momentos distintos. "O Estado das Coisas" aparece-nos hoje como o último filme do primeiro período de Wim Wenders, sinal ou manifestação do fim de um ciclo. Algo que se diria adivinhado pelo próprio filme, que parece existir dentro de uma consciência de um fim, exibida com mais resignação, ou mesmo com mais exasperação, do que propriamente com tristeza. Porque se parece evidente (estranhamente evidente) que se debruça sobre um "rigor mortis", não quer dizer que seja um filme de luto. De certa forma, é o contrário disso, o filme onde Wenders finalmente desfaz um luto - em termos simplistas podíamos dizer: um luto pelo cinema clássico americano - que lhe tomara praticamente toda a obra anterior (e aqui chegados, relembremos títulos como "Ao Correr do Tempo", "O Amigo Americano" ou "Lightning over Water", sobre a morte de Nicholas Ray).
cinema, paraíso perdido."O Estado das Coisas" terá servido a Wenders para superar o seu próprio impasse, mesmo que para isso tenha precisado de recorrer a um aniquilamento quase geral. E esse aniquilamento - em sentido literal - fica particularmente bem expresso em toda a sequência final do filme, passada numa Los Angeles filmada como se fosse um cenário de "western" povoado por zombies. Uma Los Angeles-cemitério, onde os mortos são muito mais do que os que, no filme, se vêem morrer.
É grande a tentação de recorrer a uma analogia, e dizer que "O Estado das Coisas" é "O Desprezo" de Wim Wenders. Há parentescos que se podiam tornar evidentes sem grande esforço retórico, começando pelo sublinhar das semelhanças na relação de Wenders e Godard com a memória cinéfila clássica, e entrando depois por questões de detalhe: ambos se passam durante a rodagem de filmes ("O Estado das Coisas" narra o que acontece quando um filme em rodagem na Praia das Maçãs é interrompido), curiosamente qualquer deles ao pé do mar, e ambos convocam, para além do carácter referencial que partilham, uma figura tutelar do cinema clássico (Samuel Fuller no "Estado das Coisas", como Fritz Lang em "O Desprezo").
Mas, muito para além disso, são dois filmes que abordam, de maneira quase "ontológica", o profundo desencanto de quem os fez. Não é difícil fazer um pequeno exercício de "transposição" e imaginar a frase-epígrafe de "O Desprezo" (a tal, celebérrima, que Godard inventou e atribuiu a André Bazin, sobre o cinema como substituição de um mundo em acordo com os nossos desejos) aposta a "O Estado das Coisas", servindo o exercício para tirar a limpo até que ponto os filmes se tocam: também no filme de Wenders se diria haver uma crença que encontra os limites da sua falibilidade, uma espécie de fé mitológica num poder primordialmente harmonioso filmada no momento em que se desfaz - o cinema como paraíso definitivamente perdido, onde o refúgio se tornou impossível.
espectros.Nesse sentido, é um filme de "fim de sonho" - e é muito curioso que ele seja uma reacção directa, da parte de Wenders, a todos os problemas que encontrou (ou que estava ainda a encontrar) na rodagem de "Hammett" para a Zoetrope, o elefante branco criado por Coppola e que viria a significar, também para ele, o fim do seu sonho (justamente, para Coppola, o sonho de reencontrar o paraíso do cinema clássico). "O Estado das Coisas", enquadrado assim, torna-se ainda mais especial, a encruzilhada que o gera torna-se ainda mais palpável - tudo se liga a tudo, e tudo rima com tudo, como se fosse bafejado por uma extraordinária justeza.
Mas também é preciso dizer que é um filme que dá imenso prazer ver. É verdadeiramente estimulante assistirmos áquilo a que parece ser um confronto entre o improviso - que a maior parte das cenas parece denunciar - e o determinismo com que Wenders o encena, como se soubesse muito bem até onde queria chegar - que tem uma progressão, sobretudo a partir da chegada da personagem de Patrick Bauchau a L.A., implacavelmente lógica - mas precisasse de ir descobrindo o "como" ao longo do filme. É preciso dizer que "O Estado das Coisas", sendo um filme de náufragos, isto é, um filme sobre gente que fica encalhada com todo o tempo do mundo nas mãos, é também um filme de fantasmas: que dizer, por exemplo, da fabulosa cena do jantar, verdadeira reunião de espectros num tempo suspenso (e como sabemos, quando o tempo se suspende não pode haver cinema). Mas que dizer ainda dos ecos de um Portugal-fantasma de há 20 anos, de uma Praia das Maçãs ou de uma Lisboa que se diria terem ficado desertas (igualmente fabulosa, a sequência em que Samuel Fuller, o espectro-mor do filme, apanha um táxi para o aeroporto mas sai no Cais do Sodré e vai para o balcão do Texas Bar).
"O Estado das Coisas" é um daqueles filmes que, por mais triste que seja o seu conteúdo, foi soprado por qualquer coisa que o transformou num filme "feliz": pelo que diz, pelo que conjuga, e pela invulgar justeza com que habita o seu lugar na(s) história(s).