Cérebro de quem aprende a ler mais tarde reage de forma diferente

Castro Caldas observa desde a década de setenta a estrutura do cérebro letrado e analfabeto. Mas como é que essas diferenças se refletem quando aprendemos a ler e escrever tardiamente? Foi o que quis saber agora Castro Caldas, depois de observar 12 mulheres que aprenderam a ler e escrever na idade adulta. Os resultados da investigação valeram-lhe o Prémio Bial de Medicina 2003.

Lança-se uma lista de palavras em frente a uma pessoa atenta. Segue-se uma nova lista com algumas das palavras inicialmente apresentadas. Pede-se à voluntária que levante o indicador quando reconhecer uma palavra repetida. Nem mais um músculo - porque pode alterar o resultado. A partir da leitura da actividade cerebral constrói-se um mapa.

Por onde andou a informação? O que foi necessário activar para a resposta? E quais as diferenças entre uma pessoa que aprendeu a ler na infância e outra que fez a aprendizagem na idade adulta? Este é um exemplo de uma das provas realizadas a 12 mulheres no âmbito do projecto inédito que visa estudar a influência do conhecimento das regras da leitura e da escrita na função cerebral, sob a coordenação do neurologista Alexandre Castro Caldas.

Os resultados inéditos deste trabalho permitiram perceber que o cérebro de uma pessoa que aprendeu a ler tardiamente reage de uma forma mais lenta na tradução da imagem das letras quando comparada com alguém que recebeu a escolaridade na infância. Mais um passo do especialista na área do cérebro analfabeto.

O investigador dedica-se a esta área de estudo desde a década de 70. A obra que reúne os seus mais importantes trabalhos, intitulada "O Cérebro Analfabeto" valeu-lhe recentemente o Grande Prémio Bial de Medicina.

Que a cultura altera a anatomia cerebral já não é novidade. Os primeiros trabalhos de Alexandre Castro Caldas nesta área foram realizados com o neurologista António Damásio, da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, autor do livro "O erro de Descartes". O estudo abordava a afasia, uma perturbação da linguagem que resulta de uma lesão cerebral. Neste primeiro capítulo foi possível registar manifestações diferentes nos analfabetos e letrados. O modelo transferiu-se para pessoas normais, sem lesões, na procura de estratégias diferentes para resolver problemas.

"Encontrámos, por exemplo, uma dificuldade muito maior no processamento de repetir pseudo-palavras ou aprender uma palavra nova nos analfabetos", recorda o investigador, acrescentando: "Os analfabetos dão uma aproximação grosseira sem decompor a palavra em sons elementares". A partir daqui avançou-se para os primeiros estudos de imagem através de exames de Tomografia por Emissão de Positrões (PET), realizados na Suécia. "Foi um marco importante porque permitiu ver que eles não eram capazes de fazer as coisas porque não usavam o cérebro da mesma maneira, activavam-no de uma forma diferente", assinala Castro Caldas.

Seguiram-se outro tipo de provas em diversos domínios. "Um dos resultados mais importantes foi o facto de percebermos que o corpo caloso [que une os dois hemisférios do cérebro] é mais estreito nos analfabetos do que nos não-analfabetos, sugerindo que por essa região, que não se chega a desenvolver, poderiam passar fibras que serviam a leitura e a escrita", diz realçando a descoberta da "diferença visível anatomicamente".

E com a prova de que a aprendizagem da escrita e da leitura (ou a ausência da mesma) mudava alguma coisa dentro do cérebro, chegou-se ao actual ponto de estudo. "Foi isso que agora fomos estudar nas pessoas que aprenderam a ler e a escrever mais tarde, ou seja, se não tinham estrutura anatómica, como é que poderiam estar a aprender?". O projecto, numa observação feita através da magnetoencefalografia, levou a equipa de investigadores a verificar que quando a aprendizagem é feita na idade adulta as pessoas não serão capazes de fazer passar a informação de um hemisfério para o outro, no canal do corpo caloso.

A experiência, que decorreu no âmbito de uma bolsa de investigação da Bial, vai prosseguir com a exploração desta particularidade: "Vamos pôr estes recém-letrados a escrever com a mão esquerda e ver, em imagens, como a informação passa de um hemisfério para o outro". Em Julho já será possível saber se os recém-letrados estão a usar outras estruturas para fazer a operação. "É provável que recorram a uma imagem visual e a uma operação muito mais complicada que é de ter de inverter a imagem visual. Isso implica usar muito mais cérebro e, por isso, é muito mais desgastante. Além disso, demora mais tempo. Tudo isto pode explicar porque é que os adultos têm grande dificuldade em aprender a ler e a escrever".

E agora? Como corrigir o ensino, adaptando-o às modificações anatómicas? "Não tenho ainda uma receita. Estamos numa fase de recolha de informação. Tornou-se muito claro que as operações escrita e leitura, que aparentemente nas crianças se desenvolve em paralelo, são claramente distintas nos adultos em termos neurofisiológicos e que, por isso, carecem de uma aproximação especial". Uma percepção que, segundo defende, deve ter consequências no programa de ensino de adultos.

O neurologista espera chegar mais longe nesta investigação para tentar perceber como é que, num adulto, o cérebro está organizado antes e depois de aprender. E, por estranho que pareça, o ideal seria mesmo que o objecto de estudo, isto é, a população analfabeta, desaparecesse. "Pelo menos em Portugal. Mas, infelizmente, no mundo mais de metade da população é analfabeta..."

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