Dez anos atrás do balcão

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Luís Afonso

Pelos bancos altos do Bartoon passaram vários personagens, homens e mulheres, jovens e adultos, civis, religiosos, militares. Mas Luís Afonso tem evitado as caricaturas de pessoas - faz antes "caricatura de situação" -, optando por "vestir" os bonecos com algumas características das personalidades criticadas. Lembra, por exemplo, já ter desenhado o "barman" com um chapéu, barba e charuto iguais aos do Fidel. Ou de ter rabiscado um cliente com as vestes de taliban. "Procuro evitar o discurso directo desta ou daquela personalidade, prefiro colocar os bonecos a comentar o assunto. ", diz o cartoonista.

Nos vários espaços que tem no PÚBLICO, Luís Afonso dedica-se mais aos temas políticos e sociais; n'"A Bola", com Barba e Cabelo, o assunto é, impreterivelmente, o desporto, e essencialmente o futebol, claro; na "Grande Reportagem" procura-se o assunto do momento com o Lopes - repórter pós-modernista - o seu único personagem com nome, que era para se chamar Tavares mas teve que ser rebaptizado porque o director era Miguel Sousa Tavares...

Tal produção diária de "cartoons" nem sempre é fácil. É que isto do humor também sofre de "silly season", como os jornais em Agosto, quando está tudo a banhos. Receita para fontes de inspiração é coisa que não existe. "Se estamos à espera que uma excelente ideia caia na secretária ou no estirador é melhor esquecer." Por isso, há que ser rigoroso no método. Ler jornais é imprescindível. "Dou por mim a ler o jornal e a seleccionar quase automaticamente as notícias que posso trabalhar". Quais? Bom, uma olhadela rápida pelos Bartoon de um mês "normal" deixa pelo menos uma conclusão óbvia: as tricas políticas são a matéria-prima mais utilizada. "No fundo, tento que o Bartoon aborde precisamente aquilo que os leitores do PÚBLICO procuram nas notícias que lêem."

E depois há assuntos incontornáveis, como a guerra. "É um tema difícil, mas se o tratarmos pelo lado do absurdo e das contradições haverá sempre por onde pegar." Outro tema que supostamente não se prestaria a um "cartoon" era a queda da ponte de Entre-os-Rios. "Cai uma ponte, morrem pessoas. É claro que não vou trabalhar sobre isso. Mas quando começam a aparecer justificações para o sucedido que se baseiam na falta de conservação ou aquela confusão dos areeiros, as coisas tornam-se ridículas e então trabalho isso na vertente da ironia e da interrogação", conta Luís Afonso.

A interrogação, diz mais do que uma vez, é talvez o grande motor da sua inspiração. "Já me perguntaram se me considerava um 'opinion maker'. Acho que sou mais algo do tipo de 'interrogation maker', se é que isso existe". Atrás do balcão, o "barman" de três ou quatro cabelos em pé, grandes olhos, queixo enorme e bigodinho aparado, lá vai atirando os seus "bitaites", deixando no ar algumas dúvidas - não é à toa que o terceiro "boneco" é, muitas vezes, de silêncio.

Às vezes, Luís Afonso interroga-se demais. Isto é, tem mais do que uma ideia boa por dia. Há que escolher. "Há alturas em que é complicado fazer opções, deitando umas para o caixote em detrimento de outra, tal como também há casos em que é difícil arranjar um tema interessante." Diz não fazer "cartoons" por necessidade de se exprimir, mas assume-se um "cartoondependente" no sentido de ter que produzir todos os dias para poder gerir as ideias.

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