Jackie Brown amo-te Foxy Lady

Depois do magistral "Cães Danados" (1992) e de "Pulp Fiction" (que lhe trouxe a consagração definitiva em 1994, com a Palma de Ouro em Cannes), Quentin Tarantino regressava ao "thriller", numa adaptação do romance "Rum Punch", de Elmore Leonard. No entanto, "Jackie Brown" (1997) demonstra que o cinema do obsessivo "film buff" - feito de alusões e referências aos imaginários mais díspares - também tem coração, através da singela história de amor entre dois "losers", Jackie e Max, a quem é dada uma segunda oportunidade na vida.

Com este filme, mais reservado, longe da exuberância das obras anteriores, Tarantino atingiu a maturidade cinematográfica, o que não deixa de ser adequado numa história sobre pessoas maduras, interpretadas por um elenco soberbo. Nele se destaca a estonteante Pam Grier, "sex symbol" negro dos anos 70 e rainha dos "blaxploitation movies" (género feito para, e pela, orgulhosa consciência negra, que assim reagia à marginalidade que o "mainstream" lhe reservava), homenageados de forma sentida pelo realizador. Tarantino alterou a personagem principal do romance de Leonard (que era branca e se chamava Jackie Burke) para poder declarar o seu amor e oferecer o filme a Pam, a quem já tinha prestado tributo numa cena de "Cães Danados", cujo argumento lhe era dedicado. Um caso de fascínio, o mesmo que motivou a recuperação de outras figuras esquecidas pelo tempo, como Lawrence Tierney (veterano do "film noir" dos anos 40 e 50) em "Cães Danados", John Travolta em "Pulp Fiction", Robert Forster (actor importante do final dos anos 60 tornado "habitué" da série B), também em "Jackie Brown", ou David Carradine, no próximo "Kill Bill".

Pam agradeceu e aproveitou para voltar a brilhar, exibindo o mesmo charme "cool" de sempre. Sem esconder as marcas dos anos (já tem 53), dá uma lição de como envelhecer com classe e dignidade e chega a ser comovente no belíssimo final, quando o rosto se ilumina para acompanhar com os lábios "Across 110th Street", o tema-título de Bobby Womack para um dos precursores do movimento "blaxploitation", e despedir-se do género que fez dela um ícone.

De Meyer a CarpenterMas, afinal, quem é Pam Grier? "Actriz de culto", claro. Se alguém merece de forma inequívoca esse epíteto, é ela, figura incontornável do cinema "trash" dos anos 70, cuja história se confunde com a sua própria. O seu primeiro papel é um prenúncio disso mesmo - uma participação minúscula na obra-prima do mítico Russ Meyer, "Beyond the Valley of the Dolls" (1970). Por essa altura já Pam, filha de um mecânico da Força Aérea e de uma enfermeira, tinha arranjado um emprego como telefonista na lendária American International Pictures (AIP), a companhia para a qual Roger Corman tinha realizado as suas obras.

No entanto, não foi na AIP que Pam começou a ganhar notoriedade, mas sim na New World, que o próprio Corman fundara quando abandonou a realização. Quem a descobriu foi Jack Hill (um dos ídolos de Tarantino), que a levou para as Filipinas, onde fizeram os seminais "The Big Doll House" (1971) e "The Big Bird Cage" (1972), que inauguraram um dos géneros mais populares de "exploitation", os "women in prison movies" (os filmes passados em prisões de mulheres, pejados de violações, torturas e banhos de chuveiro...) e deram origem a inúmeras imitações.

No primeiro (à data, o maior sucesso independente de sempre), Pam é uma dura prostituta lésbica e canta "Long Time Woman" - ouvida em "Jackie Brown", na cena em que Jackie passa a noite na prisão (mero pretexto para mais um tributo de Tarantino, cujo sonho era ter podido fazer um filmes desses para Corman) -, enquanto no segundo é uma mercenária que lidera uma fuga da prisão.

Ainda nas Filipinas, Pam fez mais dois filmes de mulheres na prisão: "Women in Cages", memorável como Alabama, a directora sádica de chicote em punho, e "Black Mama, White Mama", uma versão feminina e "trash" (escrita por Jonathan Demme) do clássico de Stanley Kramer, "The Defiant Ones". Pam e a loura Margaret Markov "substituem" Sidney Poitier e Tony Curtis no papel de duas prisioneiras algemadas que fogem disfarçadas de freiras (no ano seguinte, em "The Arena", seriam duas escravas que se tornam gladiadoras na Roma antiga e iniciam uma revolta). Nessa altura, contraiu uma doença tropical que quase a matou (ficou sem cabelo e cega durante um mês), demorando um ano a recuperar.

Regressou em 1973, ano decisivo para a sua carreira. Primeiro fez de rainha vodu em "Scream, Blacula, Scream!", a sequela de "Blacula", que apresentava Mamuwalde, um príncipe africano mordido por Drácula (a seguir, viria "Blackenstein"!)... Depois, a AIP deu-lhe o seu primeiro veículo exclusivo, "Coffy", que marcou o reencontro com Hill. O êxito motivaria uma nova reunião um ano depois, com "Foxy Brown" (homenageado no título do filme de Tarantino - até as letras são iguais). Estes dois clássicos da "blaxploitation" apresentam versões femininas das fantasias protagonizadas por heróis como Shaft, figuras individualistas que actuam à margem da lei e fazem justiça pelas próprias mãos, longe dos estereótipos racistas até aí habituais ou dos negros americanos felizes e simpáticos que se viam nos filmes de Sidney Poitier e Bill Cosby.

Escultural e voluptuosa, Pam Grier é uma presença formidável de autoridade nessas obras, cuja história acaba por ser quase a mesma: uma mulher forte e determinada, que utiliza a sexualidade como arma contra os homens, parte em vingança dos que lhe magoaram uma pessoa querida (a irmã e o namorado, respectivamente). Por estes tempos, Pam era, ao lado de Barbra Streisand e Liza Minnelli, a única actriz capaz de "vender" um filme simplesmente pela sua presença.

Em 1975, com "Sheba, Baby" e "Friday Foster", tentou afastar-se dos filmes de sexo e violência a que estava associada (o segundo era a adaptação de uma BD, realizada por Arthur Marks, o filho de Groucho Marx), mas o resultado foram dois "flops". Com a morte da "blaxploitation", Pam não conseguiu dar o salto para o "mainstream" e dos filmes que fez até ao fim da década (e que incluem um ridículo "sexploitation" italiano, "La Notte Dell'Alta Marea", por onde passava também Hugo Pratt) destaca-se apenas "Greased Lightning" (1977), onde contracenou com Richard Pryor, o único cómico americano dos últimos 30 anos a quem se pode chamar "génio". Numa cena inesquecível com os dois na banheira, a primeira que rodaram juntos, Pam canta-lhe ao ouvido "Amazing Grace". Pryor apaixonou-se de imediato (alguém o pode culpar?) e chegaram a estar noivos, uma relação que terminou porque, dos dois, o volátil actor foi o único que se tornou superestrela (pelo menos, é essa a sua versão, contada na espantosa autobiografia, "Pryor Convictions").

Nos anos 80, sempre bela e fascinante, Pam Grier veio a revelar-se uma secundária de talento, como o comprovam o desempenho de uma agarrada patética em "Forte Apache, o Bronx" (1981) e a participação na série "Miami Vice" (a partir de 1984). O resto da década é preenchido por filmes dispensáveis, como o primeiro Steven Seagal, "Nico" (1988, onde, por sorte, passa a maior parte do tempo em coma...). A excepção é "Class of 1999" (1990), divertida série B em que faz de professora andróide numa escola do futuro.

Na última década, ressalta o ano de 1996: além de "Original Gangstas", homenagem - por Larry Cohen, um dos grandes cineastas independentes americanos - à "blaxploitation" (que, além de Grier, reunia Richard "Shaft" Roundtree, Ron "Superfly" O'Neal, Fred "Black Caesar" Williamson e Jim "Slaughter" Brown), entrou em extravagâncias de John Carpenter e Tim Burton, "Fuga de Los Angeles" (como transsexual) e "Marte Ataca!" (como ex-mulher de Jim Brown), que estão entre as melhores obras dos anos 90.

"Jackie Brown" pode não ter reavivado a sua carreira, mas nos filmes mais recentes - muito bons ("Fantasmas de Marte", de Carpenter) ou nem por isso ("Pluto Nash", em que é mãe de Eddie Murphy) -, Pam Grier continua a dar mostras de uma graciosidade luminosa (eterna, presume-se), capaz de elevar a mais banal das cenas.

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