Um postal enviado de Nova Iorque

Abel Ferrara, diz um produtor, "é um tremendo visionário, só que às vezes não verbaliza as coisas da forma mais perceptível" (outras vezes será demasiado claro: um jornalista francês que se preparava para o entrevistar em Nova Iorque, a uma hora combinada, contou que à primeira tentativa de contacto telefónico recebeu um nada ambíguo "fuck you man, I'm sleeping").

É verdade: estar à beira de Abel Ferrara é aceitar as regras de um tremendo caos, tentar que isso encaixe no formato de "entrevista", descodificando espasmos que fazem as vezes de gestos e uma linguagem estranha para a qual não servem as palavras. Por exemplo: o realizador quase faltou ao Festival de Cannes 2001 porque se apresentou sem passaporte no aeroporto de Nova Iorque; não o encontrando na desordem do apartamento (quem lá entrou diz que não é mais agradável do que o quarto de Linda Blair em "O Exorcista"), levou fotocópias de artigos da imprensa sobre os seus filmes como prova de identidade; claro, as autoridades americanas não eram propriamente cinéfilas. Deve ser isto, enfim, o que o produtor francês Pierre Kalfon quer dizer com "ele não verbaliza as coisas da forma mais perceptível".

"É um trabalho de 24 horas por dia produzir um filme de Ferrara", reconhece o produtor. "É preciso ir ter com ele à hora em que ele, de repente, quer falar de alguma coisa. Mas é um desafio pegar nessa visão e colocá-la em papel e depois no ecrã."

Há alguns mitos e factos sobre Ferrara, do excesso de drogas - segundo se diz, não era particularmente esquisito: cocaína, heroína, "crack" - e de álcool (hoje, Abel diz que só lhe resta o tabaco - e fuma copiosamente), até às tangentes ao porno e a outras zonas lúgubres da indústria (no início de carreira). Nasceu no Bronx, em Nova Iorque, num local que ele próprio baptizou afectuosamente como "Ranging Bull Ville" - algo como "cidade do toiro enraivecido", porque o prédio ficava em frente ao edifício onde morava Jake La Motta, o "boxeur" biografado no filme de Martin Scorsese. Era filho de "um homem da mafia", contam alguns - Ferrara corrige: era filho "de um empregado de uma organização".

Faz filmes, assegura, para não se "meter em complicações". E é nos filmes, sublinha, que está tudo da sua vida. O que é admirável é que esse excesso e este caos se materializem no ecrã em algo de tão essencial e depurado como uma tragédia. A casa de Ferrara, diz-se, é um caos; mas o quarto é tão despojado como uma cela conventual (há uma foto de Orson Welles na parede, segundo relata quem lá entrou). São assim os filmes do realizador: um sentido, quase selvagem, de vertigem, frenesim e queda; mas como parece não haver gravidade, os corpos vogam, viajam sonâmbulos em busca de algo a que à falta de melhor poderemos chamar redenção.

É de Abel Ferra um dos filmes mais belos a estrear em Portugal em 2002. Chama-se "Nosso Natal"/"'R-Xmas", e foi filmado em apenas 18 dias. A urgência e a candura foram uma hipótese de recomeço para um cineasta, após o desnorte terminal evidenciado nos anteriores "The Black Out" (1997) e "New Rose Hotel" (1998).

Pura e dura. É um conto de Natal. Branco, mas sem neve.

Depois da récita na escola da filha, do passeio em carroça em Central Park, da visita à árvore de Natal do Rockfeller Center e das compras - é Nova Iorque, e corre o ano de 1993 - ele e ela (nunca saberemos os nomes) deixam a filha entregue à avó, vestem os blusões de couro, entram na limusina e partem para o negócio (vai haver mais cenas assim, de automóvel, em que Ferrara se excede formalmente no trabalho sobre superfícies e reflexos espelhados, mostrando a existência lívida de figuras em trânsito, sempre à espera, e numa espera que não vai ter clímax).

Qual é o negócio? É branco o Natal destes filhos de emigrantes porto-riquenhos e dominicanos. E é para adultos: "'R-Xmas" (como "Our Christmas", confortante "Nosso Natal", mas também um mais arriscado "Natal para adultos" - R é também o signo para a classificação etária dos filmes). Branco e para adultos por causa do sonho americano que julgam ter agarrado com a heroína e com a coca. Ele e ela são profissionais: cortam a droga na mesa de vidro do salão, antes de começarem a inundar Nova Iorque com o pó. Ele (Lillo Brancato) e ela (Drea de Matteo) são "dealers" - os actores, espantosos, Ferrara foi buscá-los à série televisiva Os Sopranos. Mas devia dizer-se: "ela" e "ele", porque a mulher é mais aguerrida - ele é mais doce e grave, talvez porque sobre ele pese a responsabilidade simbólica de ser o chefe de família.

Ela e ele nunca deixam que o negócio interfira na vida familiar - aparentemente, está sempre calor e as canções de Natal espreitam lá ao fundo. São um par de adoráveis e crapulosas criaturas. Mas sobre elas Ferrara derrama um olhar que comove.

"A realidade em Nova Iorque, hoje, é os imigrantes terem muito poucas escolhas no trabalho que fazem. A escolha da personagem do filme foi ser um 'dealer' e nesse campo tornou-se o melhor. Mas, na essência, é um homem de família, não usa drogas, não gosta de drogas. Faz isso pela família", disse o realizador num encontro com a imprensa em Cannes.

"Nosso Natal" é uma fábula. É um filme de época. Não há neve nesta Nova Iorque e, segundo conta Ferrara, 52 anos, esta cidade já não existe - por isso dela ficam só impressões, como um cenário em fuga. Em 1993 viviam-se os últimos dias do "reinado" de David Dinkins como "mayor" da cidade (o primeiro "mayor" negro de Nova Iorque), antes de Rudolph Giuliani, que "limpou" a Big Apple e a transformou (acusam, desgostosos, os que se auto-intitulam "nova-iorquinos puros e duros") "numa Disneylândia".

Nova Iorque é a paixão de Ferrara - não esta, mas uma ideia de Nova Iorque. "O tráfico de droga abrandou e, sobretudo, mudou", conta o realizador ("depois de ter feito uma pesquisa", acautela). "Em 1993, sabíamos que às três da tarde, num determinado edifício, podíamos encontrar certas drogas - e havia até uma fila à volta do quarteirão. Agora não, a droga chega de limusina." Esta nostalgia já irrompeu por algum cinema americano recente, de Spike Lee ("Summer of Sam") a Scorsese ("Por um fio"), e continuará a habitar o cinema de Ferrara se o realizador concretizar o projecto de uma "sequela" de "O Rei de Nova Iorque", uma das suas obras mais emblemáticas, de 1990.

"Toda a gente está nostálgica em relação aos anos 70, por isso temos muito por onde nos inspirar", diz. "Por exemplo, a discoteca Studio 54, que foi um microcosmos da cidade, um 'melting pot' onde pela primeira vez figuras da sociedade, artistas da 'downtown', brancos e negros se misturavam debaixo de um mesmo tecto onde a energia era alimentada por música e drogas."

Drea De Matteo (cuja silhueta devoradora concretiza em "Nosso Natal" aquilo que Madonna apenas esboçou para Ferrara no falhado "Snake Eyes", de 1993) também se assume como membro do clã dos "nova-iorquinos puros e duros".

"Agora a cidade é um grande centro comercial. Nós somos ainda os que adoramos Nova Iorque pela sua grandeza, por mais que a Disneylândia tenha tomado conta de Times Square. Já não há 'sex shops', teatros com néons gigantescos."

do céu caiu um "dealer". Ele e ela, em "Nosso Natal", vivem, assim, os últimos dias do sonho (Ferrara continua imbatível a filmar a cidade como cenário difuso, habitado por figuras que deslizam sobre o vazio moral). Às tantas, "ele" é raptado por um "dealer" (afinal, é um polícia corrupto) que exige um resgate e quer dar à mulher uma lição de vida: obrigá-la a prometer que, com o marido liberto, os dois vão abandonar uma vida que "envenena os miúdos na rua" (Ice-T, caído do céu, como num filme de Frank Capra?). "Nosso Natal" é assim a hipótese de decantação da matriz "O Padrinho" (mas em versão família nuclear), com a fábula do avesso, ou seja, "Do Céu Caiu uma Estrela", de Capra, em estilo narcótico? O polícia corrupto é que é o anjo?

A única coisa certa é o aconchego familiar, mas para isso a moral tem de ficar à porta. E mesmo isso está a acabar: ele e ela vão deixar de conseguir esquecer o que fazem, porque o vermelho do sangue começa a misturar-se no branco da coca, destruindo a "pureza" do negócio. E ela diz-lhe (perto do fim): "Alguma coisa mudou no teu olhar, o que foi?" Nos olhos dela também mudou - só que ela ainda não viu.

"Nosso Natal" é Abel Ferrara a percorrer as ruas de "O Rei de Nova Iorque" e de "Polícia sem Lei" (1992). Lillo Brancato e Ice-T são tipicamente "ferrarianos", expressão que abre para um universo dilacerado e pungente. São variações das personagens de Christopher Walken e de Harvey Keitel nesses filmes, antes de escorregarem - vivendo ainda uma espécie de inocência (por alguma razão o filme está cheio de crianças, algo que nunca aconteceu antes nos filmes de Ferrara) - ou então percorrendo já silenciosamente as igrejas, por causa da culpa que queima.

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