O Inquilino

Não foi por capricho, e muito menos por acaso, que Roman Polanski negou, de forma obstinada, dar entrevistas para promover "O Pianista", o filme vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 2002. Foi por pudor, foi por defesa: receio de que, pelas perguntas dos jornalistas, fosse obrigado à catarse, a trazer ao de cima recordações pessoais dolorosas.

Wladislaw Szpilman, o pianista, sobreviveu ao gueto de Varsóvia. Roman Polanski, cineasta, sobreviveu ao gueto de Cracóvia. Há já algum tempo que o realizador queria fazer um filme sobre a sua Polónia natal. Não sabia como. Escondendo-se atrás de um pianista, considerou que podia suportar a convocação dos seus fantasmas (tal como achou que não iria suportar o peso emocional da reconstituição do gueto de Cracóvia se aceitasse o projecto "A Lista de Schindler", que inicialmente Steven Spielberg lhe propusera). E assim regressou à Polónia, onde não filmava desde a primeira longa-metragem, "A Faca na Água", em 1962.

Assim, "O Pianista" não é a biografia do cineasta de origem polaca (Polanski nasceu em Paris, mas aos três anos os pais, judeus polacos, partiram para a Polónia, o percurso inverso àquele que, na altura, os judeus estavam a fazer). Mas na personagem verídica do pianista Wladislaw Szpilman, na sua odisseia pela sobrevivência no gueto de Varsóvia, durante a II Guerra, está escondido Polanski e a sua sobrevivência em Cracóvia. A palavra é propositada: "escondido".

A dificuldade do realizador em escancarar a sua história pessoal (ele disse-o: não lhe era possível fazer biografia, falar demasiado dele e dos que o rodearam) talvez seja responsável por "O Pianista" se refugiar nas convenções e limites da reconstituição e do filme de "género Holocausto". Como defesa. Mas por trás está sempre Polanski - ou o nosso olhar, inevitavelmente, quer descobri-lo sempre. De tal forma que é legítimo pensar que a Palma de Ouro não foi atribuída, nem de longe nem de perto, ao melhor filme do concurso, mas àquele em redor do qual se podiam celebrar emoções efusivas, o "regresso" de um realizador à ribalta, e dramáticas: a sua experiência como criança do Holocausto.

Mas, a ser assim, "O Pianista" não deixa de ser um filme contraditório: murmura "experiência biográfica traumática" e, simultaneamente, parece negar a essa experiência pessoal a possibilidade de uma transfiguração formal, cobrindo-a com várias cortinas de "déjà vu".

o sobrevivente. A distância - em "O Pianista", o academismo

: parece não haver nada, da luz aos "décors", que escape ao modelo "filme sobre o Holocausto" - sempre foi um mecanismo de sobrevivência de Polanski. Se a vida dele, que podia estar num livro de Franz Kafka, se resumisse num "flash", podia ser assim: vive no gueto de Cracóvia, escapa à deportação (a mãe não, foi morta num campo de concentração), e é afastado do pai, depois da guerra, e deixado à sua sorte, já que não consegue relacionar-se com a madrasta.

Nos anos 60, depois da descoberta do cinema (por causa de "Citizen Kane", de Orson Welles), da frequência da escola de Lodz, onde realizou curtas-metragens, o seu individualismo não se casa com a Polónia comunista - "não tive nada que se parecesse a uma infância normal, fui atirado de repente para a idade adulta. Na Polónia, na altura, era raro ser-se jovem e ambicioso; eu, por mim, desconfiava da complacência polaca" - e parte para França.

Mais tarde será Inglaterra e depois Hollywood. Aí, o absurdo volta a dar notícias: membros do "gang" de Charles Manson entram (por erro, supõe-se) na casa de Polanski e da mulher, a actriz Sharon Tate, em Beverly Hills, e montam a chacina. Tate, grávida, e os seus convidados são assassinados de forma brutal - Roman sobrevive, por acaso está em Londres.

No final dos anos 70, é acusado de violação de uma menor, depois de lhe dar Quaaludes e champanhe. Na sua biografia, "Roman by Polanski", em que se defende argumentando que o acto sexual foi consentido, sugerindo uma espécie de "complot" montado pela mãe da rapariga, escreve: "Em todas as minhas premonições de catástrofe, nunca imaginei que podia ser metido na prisão, e ver a minha vida e carreira destruídas, por fazer amor."

Mas todas as premonições ou concretizações da catástrofe tiveram expressão nos seus filmes, na fatalidade, no absurdo, no humor negro, na claustrofobia, na degenerescência psicológica, na alienação das personagens - sempre na tragicomédia, nunca na vitimização. É conferir em "Repulsa" (1965), "Por Favor não me Mordam o Pescoço" (1967), "A Semente do Diabo" (1968) ou "O Inquilino" (1976). Em "O Pianista" a distância de sobrevivente que Polanski tomou em relação ao mundo manifesta-se, como se disse, na estranha (e decepcionante) neutralidade do trabalho formal - talvez por que Polanski aqui se abeirou mais perto do que nunca do trauma fundador da sua existência e precisasse de um filtro protector. Mas materializa-se também (e isso é bem mais interessante) na página em branco que é o rosto de Adrien Brody/Szpilman.

Depois da narração convencional da vida no gueto, "O Pianista" encerra-se, na segunda parte, num apartamento, durante algum tempo o "décor" da vida de Wladislaw, onde ele se refugia. É aí, em silêncio, num silêncio e numa solidão que quase o endoidecem, que o herói (anti-herói?) assiste, de forma passiva, à sublevação no gueto de Varsóvia. É essa passividade, de "voyeur" (de cineasta?), que salva Szpilman (que salvou Polanski?). É essa progressiva ausência - de si próprio, da sua humanidade - que quase se torna numa viagem sem regresso à loucura, que revela o mundo tal como ele é: um delírio "kafkiano", do avesso, espiral de aleatório e de barbárie. E de repente, como num sonho poderosamente evocativo, ou como silhuetas reflectidas no rosto em branco do magnífico Brody (mudo e melancólico, parecendo que vai resvalar para o burlesco), faz-se sentir a presença de outros fantasmas. Por exemplo, o Trelkovsky de "O Inquilino", essa personagem que enlouquecia à medida que o décor à sua volta vacilava, e que, não por acaso, era interpretada pelo inquilino do absurdo, do acaso e da catástrofe chamado Roman Polanski.

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