Harry Potter

Manuel, oito anos, acordou às duas da manhã (julgando que eram sete), escolheu a roupa na véspera (mas isto é segredo) e é fácil imaginá-lo rodeado pelos amigos da escola, lá mais para a tarde, provocando irrupções de inveja. Não é de ânimo leve que se vai para uma coisa destas: acaba de ver "Harry Potter e a Câmara dos Segredos" num visionamento de imprensa. Vai ser preciso esperar até se recompor da "vibração".

Na véspera, António Fontinha, 36 anos, propôs contar a história de um feiticeiro a um grupo de crianças. "Harry Potter!", terá exclamado uma delas. Não era, mas Fontinha não desatou a bater com a cabeça nas paredes, como Dobby, o elfo doméstico. Vão longe os tempos em que lhe perguntavam "O que é um feiticeiro?" Ou seja: podia-se pensar que Potter arriscava lançar Fontinha no desemprego - é contador de histórias profissional há 11 anos -, mas, afinal, até veio facilitar as coisas. "Um contador de histórias é uma novidade nesta altura do campeonato."

"Harry Potter e a Câmara dos Segredos" chega hoje às salas. Há um ano, o rival do primeiro filme da série, "Harry Potter e a Pedra Filosofal", era o próprio livro de J. K. Rowling, pela dificultosa tarefa de corresponder ao imaginário de milhões de fãs. Como alguém referiu, as exigências de um crítico carrancudo não são nada ao lado de multidões de crianças desiludidas. Agora, o desafio é suplantar o filme inaugural. "A expectativa é estabelecida pela relação com o primeiro filme", reconhece Fontinha. Isto é, já todos conhecemos os actores, o aspecto de um jogo de Quidditch, a escadaria móvel da Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts. O que fazer para que a magia continue? Acelerar o passo dos efeitos especiais. Se, no primeiro, havia 600 cenas com efeitos, o número eleva-se agora para 800. Este ano não se vai para Hogwarts de comboio, mas num Ford Anglia voador que aterra mesmo em cima de um salgueiro zurzidor. Novos elementos, novos "gadgets", novas personagens: são formas de simular a diferença quando, de facto, pouca coisa mudou.

"Quer dizer que isto já aconteceu antes?", pergunta Harry Potter a meio do filme, quando a Câmara dos Segredos começa a deixar de ser segredo. Como qualquer "franchise" da indústria de cinema, a história tende a repetir-se, mas não é à toa que há por aqui varinhas de condão e bruxos: o encantamento dos filmes de Harry Potter radica na pura visualização das mais bizarras invenções de J.K. Rowling - o braço-gelatina de Harry Potter, o Gritador, uma carta ensurdecedora, os efeitos da poção Polisuco que permitem assumir o corpo de outra pessoa.

Talvez por isso, sem as obrigações iniciáticas do primeiro filme, e seguríssimo de que não resta vivalma em todo o planeta que escape ao fenómeno (ao contrário do livro, que é bastante explicativo, para o caso de alguém ter falhado "Harry Potter e a Pedra Filosofal"), "Harry Potter e a Câmara dos Segredos" tem um ritmo imparável. É como assistir a um "trailer" de duas horas e 40 minutos: as cenas sucedem-se sem grande coerência - sem tempo, apesar da duração, para fluirem naturalmente.

"No primeiro filme levávamos 45 minutos a apresentar as personagens. Agora passámos directamente à acção, sem preâmbulos", admite o realizador Chris Columbus, que vai ser substituído, no próximo "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban", pelo mexicano Alfonso Cuarón, de "E a Tua Mãe Também" (um Harry Potter "caliente" em mira?)

Seja como for, Harry Potter está mais crescido. Quando o "trailer" do novo filme começou a ser exibido nas salas, a surpresa foi a voz de Daniel Radcliffe, o protagonista. Não o serpentês ou língua de cobra que nem o próprio Harry Potter sabia que falava, mas a voz da puberdade de Radcliffe, que tem 14 anos, mais dois que Potter. Há já quem avance o nome de Harry Potter como um dos novos heróis de acção, e a revista francesa "Première" apresenta o novo filme sob o título de "Dirty Harry"...

susto! No confronto final, quando uma gigantesca serpente exibe os dentes afiados diante do feiticeiro-herói, o pequeno Manuel encolhe-se na cadeira e tapa os olhos. Não está em causa a coragem dele, mas a nova aventura de Harry Potter mete "um bocadinho de medo".

Ameaças escritas a sangue nas paredes, uma misteriosa voz que sussurra "vou destroçar-te", Harry Potter empunhando uma espada tingida de vermelho-sangue: o novo filme é mais lúgubre do que o primeiro e, diz António Fontinha, "prega uma série de sustos". Não é por acaso que Harry e Ron chegam a Hogwarts de noite e quase todo o ambiente do filme é nocturno. "A noite é a grande mãe dos medos", lembra Fontinha.

Já refeito do susto, Manuel desenha, com assustador talento, a cobra de "Harry Potter e a Câmara dos Segredos": "É gira!" Não há risco de intimidação: irá ver o filme de novo, quando estrear. "Quanto mais medo, mais se gosta", sugere Fontinha. E a narrativa é "tão limpa que as pessoas entendem porque é precisa aquela violência", acrescenta.

Um e outro são casos moderados de Pottermania. Fontinha, dois-vírgula-cinco em dependência (numa escala de zero a cinco), leu o primeiro livro de Harry Potter depois de ter visto o primeiro filme da série, para "discutir" com o sobrinho. "Não é o meu estilo de literatura", garante.

Manuel mascarou-se de Harry Potter no Carnaval. Leu os dois primeiros volumes de J. K. Rowling, começou há pouco o terceiro, em jeito de preparação para o próximo filme, que não deverá estrear antes de 2004. "Como os meus amigos têm pressa, já leram os quatro", afirma, despreocupado. Em todo o caso, quando se juntam na escola, não é Harry Potter que detém o favoritismo, mas um tal de Banana, mestre do disfarce saído da inventividade do Manuel e companheiros. É o herói das histórias aos quadradinhos que Manuel vai multiplicando, a lápis de carvão. Qual é a particularidade do Banana? Descascar-se a rir, para fazer escorregar os seus inimigos? "Não é o que ele faz, mas o que é. Tem a cabeça amarela e a casca verde." Convém dizer que os desenhos de Manuel são a preto e branco. Da sua galeria de personagens fazem parte o Banana-Harry Potter, o Banana-SpiderMan...

O sonho do Manuel é publicar um livro; quando for grande - maior - quer ser realizador de cinema. Mas agora pedem-lhe para ser crítico: cinco estrelas para o filme, três para o livro que lhe corresponde.

mais coração. Manuel gosta mais deste filme do que de "Harry Potter e a Pedra Filosofal". António Fontinha também. "Tem mais coração." Pelo menos, procura inscrever-se numa família: a dos filmes para crianças (ou para a família, vai dar ao mesmo), parafraseando "Mary Poppins" (1964) ou "Chitty Chitty Bang Bang" (um clássico britânico de 1968, sobre um carro voador...). E Hogwarts, coberta de neve, assemelha-se mais ao castelo de qualquer conto Disney do que a uma escola de feitiçaria...

"Estava à espera de menos. É uma boa história, inteligente". Para Fontinha, Harry Potter 1 era "muito cheio ao nível das imagens de fantasia". Em "Harry Potter e a Câmara dos Segredos" ainda se fazem "concessões ao espectáculo", mas a trama - algo "policial", nota - está "bem condimentada".

O segredo do sucesso de Harry Potter já foi dissecado. Mas o contador de histórias pode oferecer mais achegas: "Tem uma série de paralelismos com a realidade." Não por Harry Potter estar disposto a tudo para voltar à escola - possivelmente, é o único... -, mas o facto de tudo se passar numa escola, por exemplo. Ou seja, "atravessa-se o plano da realidade para entrar num mundo de fantasia".

Por outro lado, "começam a aparecer mais famílias" no segundo filme. "No primeiro, as referências eram negativas." Mas se os tios de Harry Potter, os Dursley, estão de volta, também os excêntricos e afáveis pais de Ron fazem a sua aparição. "Há uma sensação de casa que é valorizada."

Diz Fontinha: "O imaginário das bruxas ainda hoje se aguenta porque são figuras muito cativantes, que representam universos muito preenchidos, fantásticos. Daí o furo da autora..."

Para Manuel, o último grito de "Harry Potter e a Câmara dos Segredos" são as mandrágoras. "Eram muito giras." Das personagens novas, escolhe Gilderoy Lockhart, o novo professor de Defesa Contra as Artes Negras, um Narciso interpretado com fina gabarolice por Kenneth Branagh (o melhor papel em anos?). "Tem cara de aldrabão, Manuel?", pergunta-lhe a mãe. Ele confirma. Só Murta Queixosa - "uma menina da escola primária, com óculos e totós" - não era como tinha imaginado.

António Fontinha não se limita a contar histórias. Do seu trabalho faz também parte a recolha de contos, dos que não se encontram nos livros mas numa memória em vias de extinção. É também à tradição oral que J. K. Rowling vai buscar inspiração. "O início do filme é forte, com aquele elfo", afirma Fontinha, referindo-se a Dobby, que vem avisar Harry para não voltar a Hogwarts e acaba por espalhar o terror na casa dos Dursley e uma cremosa sobremesa em cima da cabeça de um dos convidados do jantar. "Lembra uma figura popular nas tradições orais nórdicas, o Trasgo, que faz diabruras dentro de casa. Aparece para provocar desacatos."

As leituras são infinitas. Quando Harry e Ron seguem um séquito de aranhas até à gruta de Aragog, é "O Flautista de Hamelin" ou Indiana Jones? A propósito de leituras, Fontinha sublinha a forma como o livro é retratado no filme, "numa crítica magnífica àquilo que é hoje a literatura". De um lado, há Gilderoy Lockhart, "um tipo que vende uma data de livros e que é um gabarolas e vaidoso que usa os livros"; do outro, há o livro "em branco que só mostra o que quer mostrar".

Duas conotações negativas que não ecoam propriamente a promoção do livro e da leitura junto das crianças... É um perigo, este Harry Potter.

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