Mundo Fantasma

tem perseguido o cinema espanhol (todas as cinematografias têm os seus) com particular incidência: a Guerra Civil de Espanha e a consequente ditadura franquista ou, melhor dizendo, o peso desses traumas nas gerações que cresceram com eles. Natural, portanto, que os cineastas prefiram ir directamente à origem do mal, recuando até à infância - idade da inocência, do terrífico, metáfora para as duas Espanhas em confronto, os idealistas republicanos e os opressivos nacionalistas - para evocar a primeira eclosão do terror.

"O Espírito da Colmeia" (1972), do mestre errático Víctor Erice, estabeleceu o paradigma, propondo uma leitura do tenebroso contexto político à luz do cinema de terror: Frankenstein, ícone do horror, surgia como uma figuração possível do general Franco, que a pequena protagonista do filme, Ana, pretende redimir...

Já este ano estreou, entre nós, "O Mar", do catalão Agustí Villaronga, que também regressava a uma infância marcada pela guerra civil para demonstrar a genealogia da irredimível violência dos seus protagonistas. Filme doentio, convocava o "gore", não para se inscrever no território do terror, mas porque a morte assombrava os corpos desde as imagens iniciais. Ao contrário de Eric, não havia nada de nostálgico nessa revisitação da infância, como não há em "Nas Costas do Diabo", terceira longa-metragem do mexicano Guillermo del Toro. Educado por uma avó severamente católica, Del Toro costuma dizer que tem passado "os últimos 26 anos a tentar recuperar dos primeiros dez". Não é outro menino-prodígio, o espanhol Alejandro Amenábar, que também faz "ghost stories" porque, em criança, foi depositado num colégio católico? A infância é um lugar terrível, do qual nunca se sai completamente - é esse o princípio esboçado por "Nas Costas do Diabo".

os piores anos da nossa vida. Perguntaram a Del Toro, alguém que abandonou o "establishment" de Hollywood para rodar esta co-produção espanhola e mexicana com a chancela dos irmãos Almodóvar, se poderia ter rodado "Nas Costas do Diabo" na América. "Nunca. Qualquer estúdio teria ficado horrorizado com a violência infligida às crianças ou provocada por elas. Nos filmes americanos, elas são personagens inacreditavelmente seguras e pouco complexas, mas os piores anos da minha vida foram os da infância. Quando se é uma criança feliz que joga futebol, talvez seja um período fantástico. Mas quando se é uma pálida e introspectiva criatura das sombras - como eu era - é o inferno."

Se se tem insistido no parentesco com o excelente "Os Outros", de Amenábar, o filme de Del Toro não é uma "ghost story" "tout court" - embora andem por lá fantasmas... Se ambos fazem uso de convenções do cinema clássico, "Nas Costas do Diabo" não se inscreve tanto num género como "Os Outros" - a sua "ghost story" é acessória face à alegoria política que pretende ecoar.

Em plena Guerra Civil, uma bomba cai, sem explodir, no átrio de um orfanato, onde chega o pequeno Carlos, "bem educado", como nota um dos tutores, Casares (o argentino Federico Luppi). É-lhe destinada a cama de uma criança recentemente desaparecida - percebe-se o que o espera, assombrações e suspiros nos corredores.

Espaço enclausurado e lúgubre por excelência, o orfanato é teatro de frustrações e crispações multiplicadas em triângulos, mas sempre com um vértice comum: Jacinto (Eduardo Noriega), alguém com quem a infância foi particularmente cruel. "Eras o mais triste de todos", o mais orfão, diz-lhe a proprietária do orfanato, Carmen (Marisa Paredes), a quem Del Toro deu uma perna de pau, um molho de chaves e o corpo de Noriega. Jacinto é o irrecuperável, a criança que cresceu e voltou ao orfanato apenas para roubar o ouro dos cofres, contraponto ao pequeno Carlos, candidato a Harry Potter (e há mais em comum com a narrativa do feiticeiro adolescente...). Por isso, vai ser terrivelmente castigado, num martírio perpetrado pelas crianças, para depois receber o abraço fantasmagórico debaixo de água. Esta é também uma história de vingança e, sobretudo, uma vingança sobre a História, com as crianças insurgindo-se num levantamento popular contra uma figura odiosa, simbólica representação do ditador Franco. Mas, involuntariamente ou não, Del Toro acaba por fazer da personagem de Noriega o mártir de serviço e o fim do filme é-nos vedado: as crianças sobreviventes são deixadas à solta, frente à tórrida planície catalã; mas os fantasmas, presume-se, perseguem-nas.

"Nas Costas do Diabo" é uma espécie de desvio na filmografia de Del Toro, não só por ser um intervalo na sua produção americana, mas também pela sua contenção visual, devedora de uma vontade de classicismo. Almodóvar perguntou-lhe em que género arrumaria o filme. "Mistura de géneros" e "filme estranho", foram as respostas. Estranho (mas não bizarro), talvez, por essa mistura de influências: além do terror, perpassa a influência de Buñuel, de "Tristana" (a perna amputada de Marisa Paredes a citar a perna amputada de Catherine Deneuve?), e a promessa de "western" na paisagem árida da planície catalã, com a figura da jovem criada, de avental, enquadrada pela porta como em "A Desaparecida", de Ford. Mas falta fôlego a Del Toro e, sobretudo, rigor: a contenção inicial esvai-se na segunda metade, com a sua precipitação de torturas sádicas. É que "Nas Costas do Diabo" podia ser mais negro - afinal, é sobre a infância. Assim, é apenas um "Harry Potter" mais sombrio... Só para adultos, claro.

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