"É preciso que o cinema seja claro, porque tudo o resto não o é", diz Manoel de Oliveira, numa entrevista à revista francesa "Cahiers du Cinema" a propósito do seu último filme, "O Princípio da Incerteza". "As paixões, os sentimentos, a vida, nada é claro." Regra elementar: face ao desconcerto do mundo, é preciso que o cinema, máquina de produzir sentido, inscreva nele alguma ordem.
Oliveira, cineasta da claridade e da clareza? Pode parecer heresia de alguém que tem multiplicado mistérios com a sua obra, mas como afirma a personagem de Camilo Castelo Branco em "Francisca" (1981), "das coisas visíveis não se deve dizer mais nada". Se, aí, o cinema não tem mais a acrescentar, então deve trabalhar para decifração das coisas invisíveis.
É uma forma de entrar em "O Princípio da Incerteza", filmado a partir do penúltimo romance de Agustina Bessa-Luís, "Jóia de Família" (publicado em 2001, primeiro tomo de uma trilogia intitulada "O Princípio da Incerteza" - ver texto nestas páginas). É sob o princípio da incerteza que nos chega Camila (Leonor Baldaque), derradeira heroína de Oliveira, espécie de Fanny Owen (outra personagem de Agustina reivindicada pelo realizador, que preferiu chamá-la Francisca) com uma vingança, ou como a Ema de "Vale Abrãao", mulher que semeia cadáveres atrás de si. É uma figura feminina, como tantas na filmografia do realizador, talhada para um destino trágico - estivéssemos nós no território do romanesco de "fin de siècle", isso seria inevitável.
Mas o tempo de "O Princípio da Incerteza" é o de um decadentismo "nouveau siècle", quando se é educado "na estreita amizade com as Tartarugas Ninja" (as palavras são de Agustina) e a tradição se desmorona, consumida pelo vício e por um hedonismo desenfreado. É nesse cenário que Camila, porventura a mais complexa das heroínas de Oliveira, se vai oferecer ao jogo masoquista dos outros, com desconcertante invulnerabilidade. Mutante, porque, como dirá alguém, é impossível fazê-la sofrer. Camila faz da virtude o seu vício. Os outros é que ainda não perceberam que "o primeiro passo da inteligência é a bondade".
Mas Camila é filha de jogador: há-de casar com um herdeiro rico, António Clara (Ivo Canelas, em perfeito registo "blasé"), apesar de amar Touro Azul (Ricardo Trepa) ou talvez por isso mesmo. "A sedução dura menos do que a convicção. O nosso casamento é para toda a vida", diz. Há ainda Vanessa (Leonor Silveira), amante de António Clara e parceira de negócios de Touro Azul, proprietária de uma discoteca, vulgo casa de alterne.
duelo. São estas as quatro peças do tabuleiro de xadrez que "O Princípio da Incerteza" põe em confronto, reservando para os homens o mero papel de peões e para as mulheres o duelo decisivo. Por isso, num espantoso plano em que Camila regressa a casa, só a vemos a ela e a Vanessa, apesar de António Clara também estar presente - descobrimo-lo depois, atrás de um banco, quando anuncia que se vai deitar.
Por outro lado, são os homens que evidenciam falhas: António Clara coxeia, Touro Azul é um tolo, Daniel Roper (Luís Miguel Cintra), o intelectual de serviço, é o primeiro a morrer. "O Princípio da Incerteza" é filme onde as mulheres são carnívoras, força terrível que se abate sobre os homens - são eles os verdadeiros passivos - e os consome: António Clara morre numa labareda infernal, Touro Azul é preso. E, se Vanessa escapa, é Camila que se ergue vitoriosa, depois de ter feito do sofrimento a sua arma e de nela ter sempre prevalecido o "princípio da incerteza" - até à destruição da máscara, mas aí já não resta ninguém para assistir. A história de "O Princípio da Incerteza" é a história de uma inversão, onde as presas se revelam, afinal, predadoras.
Filme bressoniano ("Les Dames du Bois de Boulogne"), mas também buñueliano ("O Anjo Exterminador"), "O Princípio da Incerteza" convoca ainda o recente "A Cativa", de Chantal Akerman, adaptação proustiana onde um homem tentava prender uma mulher apenas para a deixar perder. Mas, se lhe pode encontrar esse ar de família, ninguém filma como Oliveira, para quem o cinema não é mais do que "teatro visto por um espectador munido de binóculos". Cinema-teatro, portanto, onde as personagens falam mais para fora da câmara do que entre si, onde o artifício da representação é constantemente exposto, o que faz de Oliveira o mais moderno dos cineastas (podemos lembrar-nos de outros, como Rivette, que têm explorado a teatralidade no cinema, mas sem o curto-circuito que Oliveira provoca). "Oliveira não dirige de forma psicológica, mas física", afirma Leonor Baldaque na revista "Inrockuptibles". Se algo se perde na transposição da inteligência viva dos diálogos de Agustina, é, porventura, porque os actores não estão à altura da proposta.
Por outro lado, "O Princípio da Incerteza" inscreve-se num território, o Douro. Se Oliveira filma tantas vezes o rio, reenquadrando-o na janela de um comboio, é porque há nele um pré-determinismo, como havia em "O Rio do Ouro", de Paulo Rocha. Com o seu "transmudar de feições" (Agustina, de novo), também o Douro faz vingar o princípio da incerteza. Camila, a heroína de "personalidade múltipla", só podia vir dali. Oliveira é que nunca se sabe de onde filma - mas sempre de um lugar onde só existe a certeza da sua grandeza.