São Tomé e Príncipe, magia sobre o equador
Chamava-se Alice e, na sua docilidade e timidez, representava a imagem de um povo singular e de uma ilha cuja beleza parece não ter limites. Era como uma pérola depositada na linha do Equador, a representação de um lugar onde o cheiro a clorofila e a terra molhada se nos cola à pele e o sorriso e a generosidade das crianças nos devolve a nostalgia da inocência. Uma viagem que deixa recordações e uma vontade irresistível de regressar um dia. 2003-10-25
Alice parecia um anjo a vaguear na noite escura de Guadalupe. O vestido branco que cobria o seu corpo de gazela não chegava para iluminar o barracão onde um formigueiro de homens e mulheres se entrelaçava no meio da escuridão, dançando ao ritmo dos seus desejos carnais e não da música. Mas tornava mais claro o seu rosto de um negro imaculado, de menina dócil e inocente, que respondia a todas as perguntas com um “sim” ou um “não” tímidos e, ao mesmo tempo, perturbantes.
Nunca saberei nada sobre a sua vida, os seus desgostos e os seus sonhos. Só sei que tinha 20 anos. Provavelmente, viverá numa das pobres cabanas que se erguem junto à estrada que liga a cidade de S. Tomé a algumas povoações e roças do Norte da ilha. Com certeza terá o seu homem, que partilhará com outras, porque um são-tomense que se preze tem que ter mais do que uma mulher. A poligamia está-lhes no sangue.
Talvez fosse uma das inúmeras mulheres que vira na véspera na Roça Agostinho Neto carregando à cabeça bacias de cacau já descascado para venderem a um ajuntador a duas mil dobras o quilo (20 cêntimos). Imagino-a também em casa a morrer de tédio, suplicando por um trabalho minimamente digno, ou por uma oportunidade para estudar e fugir à miséria, à escravidão da pobreza, à lassidão dos dias passados a lavar roupa nos riachos e a cozinhar para a família as mesmas comidas de sempre.
Não interessa. Basta-me a memória daquela noite em Guadalupe. Esta pequena povoação, no distrito da Lobata, estava em festa e os sons que se ouviam não inspiravam os mesmos sentimentos de lamento e tristeza dos cânticos matinais que se ouviam nas roças nos tempos em que estas réplicas das fazendas brasileiras eram trabalhadas por legiões de escravos vindos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Os sons da noite de Guadalupe eram vibrantes, ritmados, festivos, irresistíveis ao mais dolente dos corpos.
A noite estava quente e, apesar de não haver luar, as poucas lâmpadas de escassa voltagem que iluminavam a rua eram sufi cientes para se adivinhar toda a singularidade daquele ambiente tão africano e, ao mesmo tempo, tão parecido com o ambiente das festas populares de algumas aldeias do interior de Portugal. Depois de honrada a padroeira da terra e dançado o “socopé”, o “danço congo” e outros géneros tipicamente luso-tropicais do folclore são-tomense, a noite era de baile, e havia três: um num recinto fechado e com entrada paga, onde tocava um dos grupos da moda da ilha, e dois de acesso livre. Foi num destes bailes mais pobres que encontrei Alice. A pista de dança era um barracão atravessado por um regato imundo e numa das extremidades do recinto havia uma pequena loja que vendia todo o tipo de produtos.
Não era o melhor lugar para se estar em São Tomé, mas a presença de Alice sobrepunha-se a todas as misérias. Ela, com a sua timidez e docilidade, era o rosto da deusa que mostrou a “Ilha namorada” aos navegadores portugueses no regresso da Índia e, num ambiente de deleite e sensualidade, os arrancou do tempo e do espaço. Alice era o rosto da tal pérola que o Criador esqueceu sobre a linha do Equador, a imagem de um povo singular e de uma ilha cuja beleza parece não ter limites.
O milagre da generosidade em Água Izé
São Tomé e Príncipe é a representação terrena mais próxima da ideia que temos de paraíso. Tem praias de sonho, um mar de águas límpidas e quentes, uma floresta exuberante e, em grande parte, ainda virgem, e um manancial inesgotável de plantas e frutos tropicais. Mas no paraíso não cabem a pobreza, o sofrimento, a submissão da mulher ao homem e dos mais fracos aos mais poderosos; no paraíso não há lugar para o nepotismo, a corrupção, o analfabetismo, a falta de cuidados de saúde, o lixo espalhado pelas ruas – e há de tudo isto em S. Tomé, embora em muito menor escala do que na maioria dos países africanos.
Por isso, devemos relativizar os guias que nos apresentam S. Tomé e Príncipe como um pequeno paraíso situado sobre a linha que divide a Terra em hemisfério Norte e hemisfério Sul. Mas quem olhar para a ilha sem contaminações prévias, gozar a beleza das suas praias, mergulhar na floresta densa e misteriosa – o Obó –, quem não se deixar vencer pelo tédio e ocupar o tempo com qualquer coisa, quem se misturar com o seu povo, falar com as crianças, com os idosos, as mulheres, viajar pelo que resta das antigas roças, explorar a cozinha local, apreciar as suas tradições, enfim, quem quiser ser fiel à máxima de que na terra dos lobos se deve uivar com eles, jamais esquecerá S. Tomé. A ilha cola-se a nós como a roupa se cola ao corpo encharcada pela humidade dos trópicos. É a docilidade do povo, a sua simpatia e humildade, a meiguice das crianças, a exuberância da selva tropical, o cunho singular que o laranja intenso da flor da Erythrina imprime ao manto verde que cobre a ilha, o cheiro intenso a clorofila e a terra molhada, a luz branca do amanhecer. Tanta coisa.
Não é fácil descrever o que se sente em S. Tomé, mas jamais esquecerei aquele grupo de crianças descalças que junto aos despojos do antigo hospital da Roça de Água Izé, mergulhadas em lama e misturadas com porcos e galinhas, pediam “doce” ao grupo de portugueses que acompanhava a expedição “Latitude Zero” (ver FUGAS da semana passada). Levava na mochila um resto de chocolate e dei-o a uma menina de tranças, linda como a Alice de Guadalupe. Era tão pouco que não dava para satisfazer o apetite de uma só criança. Mas a menina de tranças e olhar amendoado e sorriso luminoso, dividiu o chocolate por outros meninos, partindo-o em pequenos pedaços até dar um último a uma menina de cabelo eriçado. E esta, quando já nada havia para dividir, ainda conseguiu partir o seu pedacinho e dar metade a outro menino que acabara de chegar. A custo, consegui suster a lágrima que parecia prestes a irromper-me da alma com a mesma brutalidade de uma tempestade tropical. Mas antes de partir voltei a olhar os rostos daquelas crianças que me tinham devolvido a nostalgia da inocência e da generosidade para os depositar definitivamente na minha memória na esperança de os rever um dia. Porque quem vai uma vez a S. Tomé traz consigo o sonho de regressar.
A Roça Rio do Ouro
A linha “Decauville” que transportava o cacau em vagões desde as plantações espalhadas ao longo dos dois mil hectares da Roça Rio do Ouro até aos seus armazéns ainda lá está. Aliás, está lá tudo: a residência do conde de Valle Flor, o jardim botânico nas traseiras, os salões onde se serviam os jantares especiais, a casa do administrador, de dois pisos, situada num plano inferior à Casa Grande, os armazéns, as casas dos feitores, a igreja e o hospital, ao cimo da alameda que se estende ao longo da sanzala.
Rebaptizada, depois da independência de São Tomé e Príncipe, com o nome de Agostinho Neto, a antiga Roça Rio do Ouro – que foi uma das mais importantes de todo o arquipélago – ainda conserva algum do esplendor de outros tempos. Foi nos seus salões grandes que a Direcção de Turismo de São Tomé e Príncipe serviu o jantar de despedida aos membros que integraram a expedição “Latitude Zero, Equatorial Challenge” (ver FUGAS do passado sábado). Estava uma noite de luar, a floresta equatorial que cobre grande parte da ilha de São Tomé dormia em silêncio e, por alguns instantes, o tempo pareceu recuar às noites faustosas em que os senhores da roças se deleitavam a comer as melhores comidas e a beber os melhores vinhos, enquanto na sanzala os trabalhadores matavam a fome com água e um pedaço de farinha de mandioca.
Nessa noite, o salão estava cheio de negros e brancos e isso já não significava nada, a não ser que as distinções rácicas em São Tomé pertencem ao passado. Mas ainda havia negros à entrada da porta, velhos e crianças da sanzala, com olhar faminto e uma óbvia ânsia de aceder à sala, ou apenas às sobras do jantar.
Hoje, já não há escravidão na Roça Agostinho Neto, que se encontra sobre a tutela estatal. Os trabalhadores já não se juntam de madrugada no terreiro para a formatura e a contagem, antes de desaparecerem pela floresta dentro, para só regressarem depois do pôr-do-sol, derrubados pela dureza do trabalho, e se sujeitarem a nova formatura e a nova contagem, antes de receberem a alimentação do dia.
Com a nacionalização das roças, após a independência, e o seu desmembramento em lotes pelos próprios trabalhadores a partir da década de 90, acabaram os trabalhos forçados e a produção em grande escala. Mas a libertação dos trabalhadores não os tirou da pobreza. Hoje, só trabalha quem quer e os que trabalham pouco mais conseguem do que sobreviver, enquanto as roças vão sendo invadidas pelo matagal Apesar de tudo, a antiga Rio do Ouro é uma das roças mais bem conservadas do arquipélago, embora sejam evidentes os sinais de abandono e degradação e choque ver o estado arruinado em que se encontra o hospital. Recuperado e equipado pela cooperação portuguesa no início da década de 90, o hospital funcionou durante pouco tempo. Quando os médicos e cooperantes portugueses regressaram a Portugal, o hospital começou a ser pilhado e vandalizado por aqueles que mais necessitavam dele. Hoje não passa de um imenso ninho de cobras e ratos cercado de capim.
Uma viagem pela ilha afortunada
Eram 5h00 quando o avião da Air Luxor aterrou em S. Tomé. No ar, sentia-se um intenso cheiro a clorofila e a terra molhada e o peso da humidade era já sufocante, apesar de o dia estar ainda a espreguiçar-se. A época da gravana, a estação seca e amena que se assemelha ao nosso Verão, já terminara e, até Maio, o arquipélago vive a estação quente e chuvosa, o período em que a humidade se cola ao corpo até ao limite do insuportável. Estava uma luz branca, rara no Equador, e durante a aproximação à pista do avião já dera para adivinhar a exuberância da floresta que cobre toda a ilha, apreciar o recorte da algumas baías e imaginar a beleza de alguns pedaços da costa banhados por línguas de areia fina.
No meio daquele tufo verde rodeado de um mar de águas transparentes, emergiam, dispersas, casas de cor clara, as casas grandes das roças que os portugueses, inspirados nas fazendas brasileiras, foram construindo nos sítios mais inimagináveis de S. Tomé e às quais deram nomes tão extraordinários como Água Izé, Uba Budo, Fraternidade, Solidariedade, Boa Esperança, Amparo, Perseverança, Esperança, Caridade, Ilusão, Saudade, Milagrosa, Generosa, Aliança, Eternidade, Alto Douro, Trás-os-Montes, Vila Real, Bombaim ou Novo Brasil.
Sons africanos, bem ritmados, esperavam os elementos da expedição “Latitude Zero - Equatorial Challenge”, que, além de levar livros e medicamentos, tinha como objectivo desportivo circundar a ilha de carro, passando por trilhos já há muito ocupados pela floresta tropical. O objectivo não foi cumprido, mas, para os participantes, a experiência foi inesquecível.
O desterro no paraíso
Em cinco séculos de colonização, os portugueses, recorrendo a legiões de escravos de Angola, Moçambique e Cabo Verde, conseguiram transformar um lugar de desterro, o sítio mais temido para qualquer degredado, um poço de febres e cobras negras, impenetrável no seu interior, num arquipélago próspero, que, apesar da sua pequenez – 1001 quilómetros quadrados – chegou a ser o maior produtor mundial de cacau e ganhou fama em todos os continentes com o seu café arábico. Fizeram roças em lugares impensáveis, plantaram até onde a floresta o permitiu, criaram linhas férreas para transportar o cacau, mas nunca conseguiram construir uma estrada que contornasse toda a ilha. Cerca de 60 por cento da superfície de S. Tomé continua hoje inacessível de carro e uma parte da sua floresta, classificada como parque natural, o Obó, um denso labirinto de árvores gigantescas, mantém-se no seu estado primitivo, tal como quando, em 1470, os navegadores Pedro Escobar e João Santarém acharam as ilhas, desertas e sem qualquer vestígio humano.
Ainda bem. É nessa dimensão misteriosa, labiríntica, luxuriante da floresta equatorial de S. Tomé e Príncipe, nesse lado virginal, que reside o maior fascínio daquele que é o segundo país mais pequeno de África, depois das ilhas Seychelles. S. Tomé e Príncipe é dos raros países que ainda conservam lugares intocados pelo homem, onde a natureza exibe toda a sua brutalidade e beleza, onde no mesmo dia é possível gozar uma horas de sol numa praia de sonho e sofrer a inclemência de uma tempestade tropical.
A herança colonial O acesso à cidade de São Tomé, a partir do aeroporto, mostra-nos toda a beleza da baía Ana Chaves, onde desagua o rio Água Grande, que atravessa a capital do arquipélago. A herança colonial está bem impressa nas suas largas avenidas e nos traços rectilíneos da maior parte dos edifícios públicos.
O primeiro contacto com a cidade é exaltante. Em São Tomé, o dia começa quando surgem no horizonte os primeiros raios de sol. Em pouco tempo, as ruas da cidade enchem-se de gente, de vendedores, de centenas de táxis amarelos – o transporte público da ilha. Mais para o interior, onde as bermas das estradas estão enxameadas de palhotas de madeira, crianças, mulheres e homens vão saindo e entrando na floresta, despertando-a de um silêncio profundo. Em pouco tempo, o calor e a humidade tornam-se quase tão insuportáveis como o cheiro do cacau em início de fermentação.
O ar enche-se de cheiros e sons difusos. Uma visita ao mercado mostra-nos os dois lados da ilha: a generosidade da natureza e a pobreza da maior parte da sua gente. Pobreza, não miséria, que em São Tomé e Príncipe só passa fome quem quer. À distância de um braço, há mangas, cocos, papaias, fruta-pão, sete variedades de banana, matabala – uma espécie de batata –, maracujás e muitos outros frutos tropicais. Há galinhas e porcos em estado semi-selvagem por todo o lado. E o mar é tão rico em peixe que basta lançar o anzol desde a praia para garantir uma refeição.
Umas horas pela cidade bastam para nos sentirmos num lugar que nos é familiar. A herança portuguesa, a começar pela língua e pela arquitectura colonial dos principais edifícios, está ainda bem presente. Quase tudo o que se bebe e come em Portugal pode ser adquirido em São Tomé, embora ao dobro do preço. A RTP África mantém os são-tomenses ligados a Portugal e às peripécias das nossa política e do nosso futebol – vividas com paixão na ilha –, às telenovelas e aos programas de entretenimento da televisão pública. A “ideologia” da cobra negra Ao fi m de alguns dias, já nada nos parece estranho em S. Tomé. A cidade é pequena e as horas de ócio são passados nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas. Para não sucumbir ao peso da humidade e da pequenez da ilha, é necessário ocupar o tempo e, para um turista ocasional, isso não constitui qualquer problema, porque o que merece ser visitado é tão vasto e esmagador que os dias são sem pre curtos – apesar do tempo no Equador parecer andar mais devagar.
O escol de praias exóticas, com águas quentes e tão transparentes que deixam ver o fundo do mar e areais extensos bordados de coqueiros, é infindável. O problema é escolher. Desde as praias das Conchas e da Lagoa Azul, no norte da ilha, às praias das Sete Ondas, Micondó, Piscina e Jalé, na costa sul, o turista tem a oportunidade de desfrutar de lugares cuja beleza supera as melhores imagens dos folhetos promocionais, alguns isolados de tudo, como a praia Jalé, onde um banho nocturno ou madrugador é uma experiência inesquecível.
Tão inesquecível como entrar floresta adentro, naquele labirinto de árvores gigantes e outras mais pequenas que lutam por um pouco de luz, naquele mundo fantástico onde o silêncio só é quebrado pelo chilrear dos pássaros e do rumorejar das águas dos riachos, das lagoas e cascatas que as chuvas tropicais vão alimentando. Um mundo misterioso de sombras e também de alguns perigos, como a cobra negra, cujo veneno é mortal. Mas, como dizia António, um são-tomense conhecer da selva da ilha, “a cobra negra tem uma ideologia: não ataca inocentes”. Mal sente a presença do homem, foge, atacando apenas quando se sente ameaçada.
A roça dos tachos
E depois há as roças, que, apesar do abandono a que a esmagadora maioria foi votada, continuam a ser lugares de visita obrigatória, pela beleza das construções, pela envolvência verdejante da floresta equatorial, pelas panorâmicas que oferecem do Atlântico, pela simpatia e hospitalidade das pessoas que lá vivem, na sua maioria em condições de insalubridade e extrema pobreza, como é o caso de Claudino Faro, uma dependência da Roça Agua Izé, onde, a partir do início do século XIX, pela mão do barão João Maria de Sousa e Almeida, foram introduzidas as culturas do café e do cacau.
Das dezenas de roças que fizeram a prosperidade do arquipélago, poucas resistiram à degradação e ao avanço da floresta. Mas algumas já começam a ser recuperadas para o ecoturismo. São João, situada mesmo por cima da povoação de Angolares, foi a primeira a ser transformada em roça turística e cultural. Propriedade de João Carlos Silva, artista plástico e apresentador do programa da RTP África “Na roça com tachos”, a Roça São João, além de juntar no mesmo ângulo de visão a floresta e o mar, é uma porta aberta para a descoberta da gostosa e picante gastronomia são-tomense. <