Uma ligeira deficiência na fala, orelhas grandes e espetadas a despontarem da cabeça, como Dumbo. Cheio de fobias, a elevadores, aviões, etc. Era um alien. Era assim Steven Spielberg a crescer: magricelas e com acne, o único judeu na escola, tímido, a tentar acabar o ano sem que os mais velhos lhe enfiassem a cabeça na fonte.
Só queria ser normal, pertencer, como o botânico de cerca de 900 anos que se atrasou e deixou partir a nave espacial. Nos anos 80, Spielberg imaginou esse alien, que parecia saído do mesmo molde das figuras que desciam da nave em “Encontros Imediatos do Terceiro Grau”. Era um extraterrestre com boas intenções.
Depois de abandonar um projecto mais negro e pessimista, que se chamaria “Night Skies”, abraçou então uma visão que juntava Bambi, “A Noite do Caçador”, de Charles Laughton, e o conselho de François Truffaut, que dirigira nos “Encontros...”, de não ter medo de soltar as suas obsessões pessoais. Na criatura, a que chamou Puck, juntavam-se, como numa montagem fotográfica, os olhos do poeta Carl Sandburg e a testa e o nariz de Ernest Hemingway e Albert Einstein.
“ET” seria a sua obra mais pessoal - assumiu o próprio Spielberg: “O filme mais significativo que fiz foi ‘A Lista de Schindler’, mas o mais pessoal foi ‘ET'”. Por causa do subúrbio, da ausência do pai (e do desejo de autoridade), do mundo povoado por adolescentes e por uma mãe que mais parecia irmã. Corresponde à estufa onde cresceu o realizador, ao imaginário que, na solidão povoada das casas todas iguais, explodia para compensar as angústias do crescimento. Foi em terrenos assim, de solidão e exclusão, que se foi trabalhando a mística dos futuros “movie brats” (Scorsese era asmático; Coppola teve poliomielite).
E no entanto, muito se desconfiou - e ainda se desconfia - de “ET”. A desconfiança, aliás, paira na recepção à obra de Spielberg (e fala-se aqui de algo que não tem a ver com o simples facto de se poder gostar de uns filmes e não gostar nada de outros). Continua a ser visto como uma figura ambivalente, mágico na manipulação da luz e de outros imponderáveis e também um feiticeiro da lógica bem mais concreta das bilheteiras. Afinal, não foi ele que mentiu em relação à data de nascimento (1946 é o que aparece na sua carta de condução) para poupar anos e poder dar consistência à ambição de “menino prodígio”, ou seja, poder dizer que realizou a primeira longa-metragem antes dos 21 anos? (não conseguiu: tinha 26 quando fez “The Sugarland Express”, a mesma idade com que Coppola fez “You're a Big Boy Now").
E como é possível, sem abandonar a alma algures, estar envolvido simultaneamente em projectos tão contraditórios como, num ano, “ET” (a luz) e “Poltergeist” (as trevas), ou, noutro, “A Lista de Schindler” e “Parque Jurássico"?
Para além disso, é o realizador de “Tubarão” (75), de alguma forma o filme que desencadeou a era e a lógica dos “blockbusters”. Esse filme é visto como uma espécie de Cavalo de Tróia através do qual os estúdios, as corporações, voltaram a reaver o seu poder em Hollywood. “Na verdade, eu fui mais uma criança do ‘establishment’ do que um produto da University of Southern California ou New York University ou dos protegidos de Coppola”, confessou Spielberg, pondo-se mais do lado da lógica do produtor do que da do “autor” que floresceu brevemente na década de 70.
Houve quem dissesse pior. Quem pegasse pelas dificuldades que Spielberg tinha em ler - só via televisão -, pelo seu desinteresse por arte ou política (ele assume que a guerra no Vietname lhe passou ao lado), e dar o exemplo do triunfo de uma, hipotética, ditadura do escapismo.
Peter Benchley, o autor do livro que esteve na base de “Tubarão”, depois de visitar a rodagem, disse mais ou menos isto: Spielberg seria um dia conhecido como o maior realizador de uma unidade de filmes de segunda, de filmes de série B.
Mas... não é que Benchley tem razão? “ET”, ainda hoje, espanta pela concisão, pela total ausência de bengalas de narrativa. Como um filme de série B, precisamente. A primeira meia-hora, até ao encontro entre Elliot e a criatura, praticamente sem diálogos, é um prodígio de criação de ambientes através da sugestão, do cinema puro, da redescoberta de um maravilhoso que vem do mudo e que ficou perdido com a morte do cinema clássico.
“ET”, e a relação com os pequenos actores, Drew Barrymore e Henry Thomas, fez nascer em Spielberg o desejo de ser pai. É ainda o filme de um filho, mas se calhar o último filme em que Spielberg pôde olhar com o espanto de um filho.
“Durante muito tempo só vivi através dos meus filmes”, contou numa entrevista. “Mas a minha vida mudou quando tive o meu primeiro filho em 1985. Foi uma extraordinária revelação porque, de repente, pela primeira vez na minha vida tive consciência - creio que por volta dos 37 anos - dos anos todos que não tinha vivido no mundo real, a não ser no mundo de Kubrick, Hitchcock, Fellini, Kurosawa, Truffaut, Orson Welles, John Ford, Howard Hawks, David Lean...”.
A partir dessa tomada de consciência, multiplicou-se em filmes feitos em nome de uma “responsabilidade” - para com a geração do pai, que fez a II Guerra ("O resgate do soldado Ryan"), para lidar com o seu judaísmo ("A lista de Schindler"), porque tem filhos, adoptados, afro-americanos ("Amistad") - ou para fugir ao estigma, com o qual decididamente não se dá bem, de realizador de “movies” em vez de “films”. Não foi difícil começar a desistir deste Spielberg. Até que, inesperadamente, surgiu um filme que Spielberg diz ter feito para ele e não para mais ninguém, nem para os filhos. E que pode ser uma boa-nova em relação ao que por aí vem. Chamou-se “AI”. Aí reencontrámos, na criança-robô chamada David, Elliot e ET, outra vez juntos.