Já estivemos aqui antes: uma estrada pela qual se avança noite adentro (para não mais sair), uma mente torturada, duas mulheres (talvez menos, talvez mais), uma loira, outra morena, a proliferação de identidades, a voragem do ciúme a reconfigurar a narrativa possível, salas herméticas com cortinados vermelhos e, claro, anões.
No entanto, quando "Mulholland Drive" foi exibido, pela primeira vez, em Maio do ano passado, no Festival de Cannes (que deu a David Lynch o prémio de melhor realização), insistiu-se no apelo: "Mr. Lynch, explain!". "Não é preciso", respondeu o realizador, limitando-se a adensar o mistério.
De facto, não era preciso, porque Lynch, o verdadeiro David Lynch estava de volta, como anunciado. Afinal, os que agora reclamavam explicações não eram os mesmos que proclamaram a estranheza do anterior "Uma História Simples" (1999), por se tratar de uma obra atípica? Na altura, ninguém pediu "explain!", embora Lynch talvez acedesse mais facilmente a justificar porque seguia, nesse filme, em linha recta pela América rural, por oposição às sinuosidades de "Mulholland Drive". Com ele, nunca se sabe. Ou melhor, sabe-se que, na sua filmografia, o desvio é regra e vice-versa. Dito de outro modo: com "Uma História Simples", Lynch propunha um desvio em relação ao seu universo através da adequação às convenções narrativas (explícita no título original, "The Straight Story", algo como "a história correcta"), uma vez que a regra no seu caso é, precisamente, uma narração estilhaçada. E quando se juntam os pedaços, nunca se tem a certeza de que a história está bem contada.
a loira e a morenaA de "Mulholland Drive" pode ser assim, ou de outro modo qualquer: há uma loira, recém-chegada a Los Angeles, que aspira a tornar-se numa estrela de cinema; há uma morena que fica amnésica depois de um desastre de automóvel e que ela, a loira, vai tentar ajudar. Isto é o sonho.
Mas, e se for um pesadelo? Nesse caso, a história é outra: há uma loira que em tempos quis ser uma estrela de cinema e que se perdeu por amor. A ligar as duas histórias, há uma estrada, Mulholland Drive. Metade sonho, metade pesadelo. Metade zona residencial das "stars" de Hollywood, metade terra batida onde aspirantes "starlettes" escolheram pôr termo às suas ilusões.
"Mulholland Drive" em 2001, como "Sunset Boulevard" em 1950: o filme de Billy Wilder (um dos preferidos de Lynch) encontrou um parceiro à altura para lançar por terra toda a mitologia hollywoodiana. E se, em "Sunset Boulevard", William Holden relembrava as suas desventuras depois de morto, "Mulholland Drive" vai mais longe: os mortos não só têm memória, como podem sonhar. "Gosto de me lembrar das coisas à minha maneira", dizia o esquizofrénico Bill Pullman em "Lost Highway" (1997).
Sim, já estivemos aqui antes. Tal como "Lost Highway", "Mulholland Drive" passa-se no interior de uma mente que se desmultiplica como numa sala de espelhos. O onírico domina (e é nisso que sustenta a construção narrativa), pelo que tudo pode acontecer: personagens desaparecem, outras aparecem, sem explicação lógica, vindas não se sabe de onde. Ou antes, sabe-se: integram o reservatório das obsessões de Lynch, sempre prontas a desfilar o seu grotesco - bruxas, anões, homens-mistério. São figuras mais ou menos aleatórias, quase sempre com um efeito centrífugo em relação a uma hipótese de narrativa. Era também por elas que Lynch se perdia em "Lost Highway", porque com tanta alienação deixava esvaziar o essencial: metia-se à estrada para correr atrás do desejo, mas esquecia-se de lhe dar corpo. Melhor: de lhe dar corpos.
Nada que ameace repetir-se em "Mulholland Drive". Se ainda andam motivos recorrentes à solta - o anão, sempre o anão -, o que há, então, de novo? Um maior controlo e esforço de condensação, sim. Mas, sobretudo, a volúpia com que Lynch filma os corpos. O que lhe escapava na "lost highway" tornou-se uma assombrosa presença nesta "lust highway".
Pode ser que Lynch tenha resumido tudo quando decidiu revelar o seu lirismo, descrevendo "Mulholland Drive" como "uma história de amor na cidade dos sonhos". Pode parecer pouco (pode parecer desarmante que um filme de Lynch se reduza a isso), até porque há mais. É verdade que se trata de uma história de amor, mas Lynch esqueceu-se de acrescentar: impossível.
Há duas mulheres que se amam, Betty e Rita - ou, pelo menos, uma delas ama a outra, porque a declaração "I'm in love with you", em plena consumação, nunca terá réplica. Duas mulheres, uma loira, outra morena, puros arquétipos da dualidade feminina, como Laura Dern e Isabella Rosselini em "Veludo Azul", como a versão dupla de Patricia Arquette em "Lost Highway". Ou como as duas Kim Novak em "Vertigo", de Hitchcock: não por acaso, é a morena que experimenta uma peruca loira - é ela o objecto de desejo. Amam-se como num "film noir", não tanto pelo enredo policial da primeira parte do filme, mas porque há uma "femme fatale" - a morena Rita, que se chama assim porque viu esse nome num cartaz de "Gilda" - e, com ela, o inevitável jogo do engano.
o sonho
Mas vai ser preciso esperar, porque a primeira parte do filme corresponde, sensivelmente, ao episódio-piloto de uma série que foi encomendada ao realizador pela cadeia de televisão norte-americana ABC, ansiosa por repetir o êxito da colaboração em Twin Peaks. A história é conhecida: quando Lynch entregou o material (com duas horas e meia e não uma hora e 28 minutos, como lhe fora pedido), a cadeia rejeitou-o sob o pretexto de que era demasiado lento, bizarro e ofensivo. Depois de o realizador declarar que não voltaria a trabalhar em televisão, os produtores franceses do Studio Canal Plus propuseram financiar a transformação do episódio-piloto numa longa-metragem para cinema, obrigando Lynch a repensar a narrativa que originalmente concluía em tom optimista.
Foram rodados mais 45 minutos de material, resultantes de um "brainstorming" do realizador consigo mesmo em meia hora, e serão os mais preciosos, dado que não só reconfiguram a narrativa, mas também se demarcam em termos de dispositivo. Note-se, por exemplo, como é na primeira parte que domina a galeria "lynchiana" de bizarrias - mafiosos, bruxas, mendigos desfigurados, o anão -, pontas soltas da série televisiva que não chegou a sê-lo e que o realizador certamente trataria de fazer render em episódios. E nem chegam a perturbar, quando Lynch as recupera para a longa-metragem: não adiantam nem atrasam, confundem-se com o cenário porque, pelo menos, estão no lugar certo, como o "cowboy", referente do mítico "western".
Por uma vez, portanto, o cinema tem muito a agradecer à televisão. Por uma vez, a usurpação fez-se no sentido contrário, com o cinema a reclamar algo à TV e a declará-lo seu.
Nada mais legítimo. Porque é na segunda parte do filme que as personagens - a ingénua e sorridente Betty, a inocente Rita -, até então esboçadas com traços vulgares (acentuados pelo facto de as actrizes, Naomi Watts e Laura Elena Harring, provirem do meio televisivo), são investidas de maior profundidade e complexidade. É nela que o cinema lança a sua sombra, não (só) para ocultar, mas para revelar o que antes era banhado por uma luz artificial - Betty já não se chama Betty, já nem sequer sorri, Rita recuperou a memória e identidade mas perdeu a inocência. É aí, enfim, que Lynch envolve os corpos em despudorada sensualidade, como alguém que cumpre um sonho há muito sonhado. Coincidência ou não, alguém abriu a caixa de Pandora e libertou todos os males. Em "Lost Highway", depois de matar a mulher, Bill Pullman pedia: "Tell me I didn't kill her". Em "Mulholland Drive", pressente-se que há alguém a tentar dizer: "Tell me she didn't kill me". Será? Tarde demais para averiguar.
Felizmente, porque o cinema - tendemos a esquecê-lo - não deriva da verificação positivista, mas de uma natureza onírica. Isto é, como o sonho, o cinema é uma projecção. Qualquer coisa de belo, qualquer coisa de terrífico. Mulholland Drive. Com Lynch, o cinema moderno reencontrou o desejo. Em versão dupla, como tudo nesse filme: o desejo de essência erótica, o desejo primordial do cinema. Como tudo nesse filme, não se tem a certeza de que ambos não sejam o mesmo.
E, afinal, o que resulta assustadoramente surpreendente num filme labiríntico é a sua coerência. David Lynch nunca esteve tão perto da perfeição - não admira que tenha subido às colinas de Hollywood, de onde se avista a cidade dos sonhos. Lá, mais perto do céu, onde tudo é perfeito. Ou quase.
É isto que se vê em "Mulholland Drive"? Pouco importa. Como dizia o crítico Serge Daney, há filmes que não temos a certeza de não ter sonhado. "Silencio".