Mas Cruise, acabadinho de sair de "Eyes Wide Shut", com Kubrick e os fantasmas conjugais do adultério, talvez estivesse interessado nisso mesmo, isto é, em repetir-se, isto é, em não acordar do sonho. Infelizmente, cometeu um erro de "casting", entregando a Cameron Crowe, que o dirigira em "Jerry Maguire", a realização do "remake" do filme de Amenábar. Crowe, esse adolescente crescido que se entretém a fazer filmes com diálogos que ficariam bem em qualquer dicionário de citações dos "twentysomething"? Esse mesmo.
Segundo o próprio, o filme original é "como uma canção de que a nossa banda gostou muito e decidimos tocá-la à nossa maneira". Talvez, mas um músico deve saber que não basta conhecer a letra das canções para propor um "cover". E, apesar de "Vanilla Sky" seguir fielmente o original, com a "tagline" "abre los ojos" a abrir, com a mesma esquizofrenia narrativa (os resultados é que são diferentes), e com Penélope Cruz a retomar o mesmo papel, o que fica à mostra é a incapacidade do caloroso Crowe para pegar num universo que lhe é estranho, porque exigia maior distanciamento (frieza?) e uma audácia narrativa que ele não tem.
Crowe, cujo último filme, "Quase Famosos", era uma autobiografia ingénua sobre os seus tempos de jornalista musical adolescente, embalada pelos sons dos anos 60 e 70, tem que lidar em "Vanilla Sky" com nada mais nada menos do que os mitos de "A Bela e o Monstro" e "O Fantasma da Ópera", além de questões como a imortalidade, o espaço virtual, o sonho. Um labirinto onde o fio de Ariadne não parece ter fim. Pelo menos, sabe-se ao que se vai: há um "playboy" endinheirado, David/Tom Cruise, em fase do espelho (em pleno narcisismo, entenda-se - apetecia ver ali o Christian Bale de "American Psycho"), com ligações amorosas de ocasião, um império herdado, e, bem, um palmo de cara. Então, porque é que ele tem pesadelos? Porque, pouco depois de encontrar o amor da sua vida, está a espatifar-se num carro contra uma parede e fica com o rosto desfigurado.
Haverá a tentação de estender o mito de Narciso para além da personagem, e de retirar as consequências a partir de uma leitura à luz do ídolo adolescente que é Cruise, mas a inexpressividade deste (dir-se-ia: a sua resistência em achar coincidências com a personagem) não serve o propósito. O que é que resta? A curiosidade dos espectadores em espreitar a intimidade do casal Cruise/Cruz no écrã, a mesma que conduzira a experiência de "Eyes Wide Shut", com Cruise na sua fase Kidman. Novo fracasso: Cruz parece levar a sério o seu papel de "última rapariga ingénua de Nova Iorque", como David se refere à sua personagem, e não faz mais do que soltar inconsequências sobre a vida no além enquanto gatos.
Confusos? Há mais. David, o desfigurado Homem-Elefante, vê-se condenado a usar uma máscara, ao mesmo tempo que, numa cela - aparentemente, cometeu um crime horrível -, vai tentando retomar o fio ao rumo aleatório da sua existência. Reviravolta atrás de reviravolta, parece cada vez mais difícil distinguir o que é fantasiado e o que é vivido. Para David e para nós. Talvez porque Crowe só queira demonstrar que consegue fazer os trabalhos de casa, tratando de não deixar pontas soltas na história (o filme pode ser elíptico mas é auto-explicativo), mas falhando em conferir a dimensão onírica que se impunha. O resultado é descosido e incontrolado, pudico (desaproveita a perversidade latente em David, uma espécie de reverso de Dorian Gray) e intragável como baunilha num prato de feijões.
Pelo menos, alguém ganhou com a transacção: Nicole 1, Tom 0.