Wong Kar-wai dá lição de cinema em Cannes
É o mais “in” dos realizadores asiáticos e o ano passado marcou o Festival de Cannes com a exibição de “In the Mood for Love”. Não levou para casa a Palma de Ouro (conquistada por “Dancer in the Dark” de Lars von Trier), mas Tony Leung conquistou o troféu para a melhor interpretação masculina. Foi Wong Kar-wai que este ano deu a lição de cinema, a décima do certame. Mas fez mais do que isso e exibiu o inédito “In the Mood for Love 2001”. Palavras para quê, passemos à prática.
“Não posso dar uma lição, faço demasiados erros. Por isso decidi que era necessário mostrar o processo”, começou por dizer Wong Kar-wai, antes de exibir a curta-metragem “In the Mood for Love 2001”. Soube a sobremesa, depois do filme, para aqueles que viram e ficaram “In the Mood for Love”. Interpretada pelos mesmos actores (Tony Leung e Maggie Cheung), reencontra os dois amantes, que nunca o chegaram a ser verdadeiramente, mas desta vez numa Hong Kong de 2001.
A exibição serviu para o realizador asiático explicar qual é o processo - ou o não-processo - da realização dos seus filmes. “Tenho sempre uma série de ideias para curtas-metragens. Começo com duas ou três histórias e por vezes elas transformam-se num filme. Não podemos escrever as imagens, a ambiência, os actores, a música. Quando escrevemos uma cena, ela perde o ritmo”, disse Wong Kar-wai, confessando que, no início, se imaginava como Hitchcock, que previa tudo. “Mas eu não sou Hitchcock, estou sempre a mudar, por isso não vale a pena [prever]”.
Godard é outra das referências do realizador asiático, como admitiu o ano passado em entrevista ao “Le Monde”. “'A bout de souffle’ ["O Acossado"] deu-me o gosto da liberdade. Percebi que era possível transgredir algumas regras da narração e da filmagem”.
É por essa liberdade que os filmes de Wong Kar-wai são histórias constituídas de pequenos fragmentos de vidros coloridos, numa leitura quase caleidoscópica. Vão-se encaixando e fragmentando, deixando o espectador suspenso. Mostram histórias que às vezes nunca chegam a acontecer (como em “Disponível para Amar”, quando a senhora Chan ensaia com Chow a conversa sobre a infidelidade do marido, que nunca sabemos se chegou ou não a ter).
"Os meus filmes são feitos a partir da adição de pequenos bocados. Trabalho por segmentos, sem saber propriamente à partida os laços que os unem, ou a sua ordem na narração. Durante a montagem ensaio uma série de combinações. É como um ‘puzzle’ de que não conheço a ordem, mas de que as peças se juntam pouco a pouco. E, no fim, descubro o conjunto”, disse Wong Kar-wai.
Não há argumento, não há ideia do que vai ser a história. Os filmes nascem de um desejo de trabalhar com determinados actores (que se tornam presenças constantes no trabalho do realizador, como Tony Leung e Maggie Cheung). As personagens desenvolvem-se durante as filmagens, o que não torna o trabalho dos actores nada fácil. Mas, mesmo assim, há algo de hipnotizante que os faz sempre voltar. Disse Tony Leung a propósito dos filmes de Wong Kar-wai: “Representamos por instinto. Não é fácil, temos vontade de nos esconder por trás de uma personagem, mas ficamos completamente nus no ecrã”.
Frame a frame, nota a nota
Wong Kar-wai comparou ainda, durante a “leçon”, o trabalho da sua equipa (com quem trabalha há 15 anos) a uma “jam session”, que se reúne de vez em quando e a música vai surgindo.
A música, essa mesma música que está sempre presente e é tão importante nos filmes de Wong Kar-wai. “É ela que dá o ritmo. Antes de começar a filmar, tenho a música sempre em mente. Ela serve-me de referência, para descrever um momento, uma cor”. De facto, poucos conseguirão escutar do mesmo modo o “California dreamin'”, dos Mamas and the Papas, depois de terem visto “Chungking Express”. A música ficou envolta numa ambiência mais “cool” e mais contemporânea e com um leve cheiro a rulote de “fast-food”.
O mesmo Michael Galasso - que assinara a banda sonora de “Chungking Express"- voltou a estar presente em “Disponível para Amar”. No filme, as personagens andavam como se pairassem no ar – Chan Li-zhen sempre deslumbrante com os seus vestidos “quipao” florais e Chow envolto nos círculos rodopiantes do fumo dos seus cigarros. Embalados pelos violinos de Galasso, que marcavam o compasso de uma câmara lenta, deambulavam em encontros e desencontros cruzados, por entre escadas íngremes e apertadas, sob a chuva torrencial, debaixo de uma noite implacável alumiada pela luz trémula dos candeeiros de rua. Saimos do filme a cantarolar baixinho, numa tristeza contida, as letras de Nat King Cole ("Quizas, Quizas”, “Aquellos ojos verdes"), que ainda cantamos hoje.
Mas, no final da lição, o único conselho que se ouviu aos alunos de cinema foi “aprendemos a fazer filmes na vida de todos os dias. Vão ver o máximo de filmes possível, os bons e os maus, porque há sempre qualquer coisa a reter”. Nem que seja uma melodia, acrescentamos nós.