Uma Vida de Insecto

A renovação do cinema de animação tradicional parece passar de maneira preponderante por John Lasseter e pela casa por ele fundada, a Pixar. "A Bugs Life" é a segunda longa-metragem a sair das mãos de Lasseter, e confirma, mesmo que de forma porventura menos "eufórica", tudo o que de bom havia sido manifestado, há poucos anos, por "Toy Story". Numa altura em que a animação clássica de estúdio - leia-se: a tradição estabelecida, ao longo de décadas, pela Disney - vive um período de modorrenta estagnação, prisioneira de fórmulas gastas, excessivamente infantilizadas e repetidas até à exaustão, objectos como "Toy Story" ou, agora, "A Bugs Life", são suficientes, por si só, para soprar algum ar fresco sobre a poeira que o tempo depositou no modelo. O segredo, a existir, até está menos na tecnologia utilizada pela Pixar - a animação por computador - do que na vitalidade com que é administrada. Ou seja, não se trata nunca, para John Lasseter, de se entregar inteiramente aos efeitos de maravilhamento causados, por exemplo, pela impressão de tridimensionalidade alcançada pela animação computadorizada, mas de os pôr ao serviço de uma ideia de animação que tudo aproxima de uma filiação clássica. A renovação, neste caso, faz-se por dentro, e a técnica de desenho empregue não é senão o seu sinal mais imediata e facilmente visível. As regras são as mesmas dos modelos tradicionais e passam pela criação de um argumento de trabalhada simplicidade, capaz de conciliar o humor com a fábula e a exemplaridade moral, e pela atenção às personagens, construídas mais por arquétipos (do Bem ou do Mal, por exemplo) do que por idiossincrasias. A partir daqui é uma questão de imaginação: ou há ideias para "encher" tudo isto e conferir uma vida à história e às personagens ou não há. No caso de Lasseter, "A Bugs Life" vem confirmar que imaginação não falta.

FotoMas há outro pormenor importante, que talvez seja o mais decisivo. A consciência de que o cinema de animação pode, e deve, ser acima de tudo uma experiência visual. De certa forma, é isso que leva "A Bugs Life" a ser um objecto muito mais conseguido do que o recente "Ant Z" (com o qual tem semelhanças que vão bastante para além do facto de ambos escolherem formigas como protagonistas). "Ant Z" era um filme que tinha óptimas ideias de argumento e alguns diálogos brilhantes mas que, do ponto de vista puramente visual (ou seja, na animação), era incapaz de conceber um imaginário que equivalesse a essas qualidades. Mais convencional nos pressupostos narrativos, "A Bugs Life" tem a seu decisivo favor uma muito maior capacidade inventiva. Sequências como a da chegada dos gafanhotos ao formigueiro, ou a da descoberta da "cidade" pelo protagonista Flik, ou a ainda a do espectáculo de circo dos insectos são a prova disso mesmo - e poder-se-iam enumerar ainda pelo menos outras tantas sequências, com destaque para o genérico final, acompanhado por uma montagem de supostos takes "falhados" durante as rodagens do filme... Mesmo não sendo um filme tão "adulto" como "Toy Story" - em termos de referências convocadas, e mesmo em termos de ritmo narrativo -, "A Bugs Life" continua longe de ser "apenas" um filme para crianças (as piadas sobre a identidade sexual da Joaninha-macho, por exemplo), e essa multidimensionalidade de leituras possíveis (crianças e adultos encontram o "seu" filme em "A Bugs Life") é outro indício da energia do cinema de John Lasseter. Curioso, porque ecoa noutros filmes recentes de animação como "Ant Z" ou "O Príncipe do Egipto", é o subtexto ideológico, voluntariamente exposto ou não, de "A Bugs Life". Tudo gira à volta de uma comunidade de formigas subjugada por um grupo de gafanhotos: elas trabalham para encontrar comida, eles aparecem uma vez por ano para colher os frutos desse trabalho. A história contada por "A Bugs Life" é então uma história de rebelião dos "escravos" contra os "senhores" - e há mesmo uma cena em que uma das formigas recita aos gafanhotos uma lógica extremamente semelhante àquela que subjaz à "Dialéctica do Senhor e do Escravo" de Hegel... Esta espécie de "proto-marxismo", consciente ou não das suas implicações, é um dos traços mais intrigantes de "A Bugs Life" - até porque, como se disse, desencadeia olhares sobre a organização das estruturas sociais que já desempenhavam papeis centrais nas recentes obras de animação acima citadas. Passa-se alguma coisa que nós não saibamos?

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