Joana D' Arc

Luc Besson, o realizador "bubble gum" de "Le Grand Bleu" e "O Quinto Elemento", às voltas com um filme histórico? E logo sobre Joana dArc, com todas as suas equações metafísicas, vozes interiores e sussurros místicos? É mesmo verdade e, admita-se, esse pormenor (ver como um realizador tão espalhafatoso ia abordar a discreta Joana) não deixava de rodear o projecto de alguma curiosidade.

O filme aí está, depois de ter sido um grande sucesso comercial em França, onde estreou em pleno ambiente de crise entre (alguns) realizadores e (alguns) críticos, na sequência de um manifesto "anti-crítica" assinado por uma série de cineastas normalmente pouco favorecidos por ela, entre os quais, justamente, Luc Besson. O filme teve, mesmo assim, uma recepção crítica pouco entusiasmada (mas das melhores que roderam um filme do cineasta), o que não o impediu, evidentemente, de encontrar um fortíssimo eco junto do público, nem de confirmar Besson como uma das "locomotivas" do sonho industrial do cinema europeu.

Nem é preciso rememoriar todas as adaptações cinematográficas que, de Dreyer a Rivette, a história de Joana dArc já conheceu, para se perceber que, perante a personagem, nenhum espectador tem (ou nenhum espectador devia ter) o olhar virgem. Mais, a partir do momento que Joana dArc serviu para que se erguessem alguns dos filmes "incontornáveis" da cinematografia mundial, a personagem deixou de ser apenas uma figura histórica, para passar a ser também uma figura de cinema. Por outras palavras, ao aventurar-se neste projecto Besson tinha que contar quer com as inúmeras representações pré-existentes quer com o facto de a sua iconografia, para o espectador contemporâneo, se ter decido, em grande parte, precisamente a partir do cinema.

"Cinéma de papá" para a época MTV

Dir-se-ia que, a contrário das expectativas, foram precisamente estas as questões que Besson melhor resolveu. Se Joana dArc serviu, a outros cineastas antes dele, para reflexões sobre o sagrado e a transcendência ou sobre o sacríficio e o martírio onde as peripécias históricas são encaradas sobretudo como veículo para essa reflexão, Besson começa por inverter esses termos. A sua "Joana dArc" pretende-se, antes do mais, um filme de aventuras, remetendo (pelo menos durante boa parte do filme) a metafísica e as reflexões para plano secundário (já lá iremos). Há uma lógica de acção a presidir ao filme, como se a intenção fosse fazer um folhetim histórico - e, narrativamente, a questão passa menos pela discussão do carácter "divino" das inspirações de Joana do que pela efectividade dos seus conselhos de estratégia militar.

Da mesma forma, todos os segmentos "palacianos" estão isentos da solenidade característica, e são revistos por um prisma contemporâneo e "urbano", com diálogos rápidos ditos em tom displicente. Por outro lado, e era por aqui que "Joana dArc" podia, se levado às suas últimas consequências, ser um filme melhor do que é, a Joana de Besson (a lindíssima Milla Jovovich) está nos antípodas das representações tradicionais da personagem - menos beata (mesmo que o sexo lhe continue a ser estranho, e a sua virgindade se garanta, aliás numa cena particularmente grotesca) e mais "jeune femme enragée", à beira da neurose, conduzindo os militares sempre com os nervos em franja e à beira de um ataque de histeria.

Não eram, portanto, ideias más de todo. Ou não seriam. Mas "Joana dArc" falha precisamente na falta de seguimento dessas ideias. É o próprio Besson a aplacar (mais do que Deus, e mais do que os ingleses) a fúria de Joana, convocando, no último terço do filme, a inenarrável personagem de Dustin Hoffman para lhe vir demonstrar que todas as suas "visões" eram fruto da sua imaginação. Por aí, também, Besson cede finalmente à discussão do carácter dos sinais supostamente divinos recebidos por Joana e, pior, à sua ilustração, em rápidos "flashes" de gosto mais do que duvidoso. A lógica do filme de acção, que se esgotara pouco depois da sequência do cerco de Orleães, cede o passo a um patético esboço de reflexão metafísica, coisa para que o filme nunca estivera talhado nem parecera interessado. Besson ainda tem tempo para sacar da cartola um punhado de efeitos visuais supostamente "modernos", tentando tornar "espectacular" aquilo que nunca o poderia ser. Mas como não teve coragem para fazer a Joana dArc o mesmo que Baz Luhrmann fez a Romeu e Julieta (a total recodificação de um imaginário), o seu filme acaba por parecer obra de um Jean Delannoy que tivesse visto uma meia-dúzia de telediscos. Ou seja, "cinéma de papá" para a época MTV.

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