Aeroporto 80

Projecto polémico por diversas e conhecidas razões, "Camarate" vê finalmente a luz do dia, numa altura em que não só se assinalam vinte anos sobre a queda do Cessna onde viajavam Sá Carneiro e Amaro da Costa como se regista um reavivar do debate sobre as razões que estiveram na origem dessa queda. "Camarate" seria sempre um filme "quente", mas o momento em que chega parece altamente propenso a acolhê-lo, e apto a fazer dele uma peça mais na renovada discussão de um dos mais célebres folhetins da justiça portuguesa.

Não deixara de ser notada a "raridade" de "Camarate": um filme português que esboça uma relação clara com um episódio específico da história portuguesa recente. Se isso, evidentemente, é um factor "neutro" (não traz ao filme nem bem nem mal), merece ser assinalado, até porque uma tal relação, ou as implicações de uma tal relação, tem um peso decisivo na organização do filme de Luís Filipe Rocha. Estamos longe de um "JFK" à portuguesa, que desse corpo às mais variadas teorias da conspiração que desde sempre circularam sobre o que teria realmente acontecido na noite de 4 de Dezembro de 1980. "Camarate" não quer especular nem atirar o barro à parede, é mesmo um filme cuidadosamente documentado: sabe que se constrói em cima de um "buraco" (tudo aquilo que não se sabe, as diferenças que

separam as conclusões oficiais da probabilidade de os factos que elas apontam se terem verificado na pratica) e o que lhe interessa não é preenchê-lo mas sublinha-lo, ou seja insistir que esse "buraco" existe - talvez por isso o filme acabe numa espécie de "suspensão", com o voo experimental de um Cessna nas condições tidas como causadoras da queda, como se se tratasse de reiterar que a única conclusão possível é que o que se sabe é inconclusivo.

Esta resistência ao sensacionalismo (quando, no fundo, e até por razões de "espectáculo", essa seria a via mais tentadora) corresponde a um acto de honestidade (e isto já não é um factor "neutro"), a uma vontade de construir uma peça quase "didáctica" sobre o caso de Camarate, um resumo do que foram, do que mudaram, e do que são as posições oficiais e oficiosas sobre o assunto.

A questão que se põe a seguir é: será o formato ficcional, dramatizado, o veículo ideal para um tal projecto? Aqui a resposta é menos nítida; percebe-se que o filme quis ter "personagens" e não meros instrumentos de exposicação, atribuir-lhes biografia e personalidade, criar a partir delas um ambiente mais ou menos romanesco que sirva de contraponto à vertente "burocrata" que rodeia os meandros do processo. Esse lado é o que funciona pior, já que nunca há espaço para as personagens se desenvolverem, e ainda menos para que esse desenvolvimento acrescente algo ao filme.

Fica-se, neste aspecto, a um nível bastante limitado, numa superficialidade de folhetim televisivo, e isso actua como interferência no eixo central do filme. É pena, porque é quando deixa a psicologia de lado que "Camarate" e melhor.

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