Três Reis

Nesta fabulosa comédia negra, "três mosqueteiros" da Guerra do Golfo confrontam-se do alto da sua inconsciência política com os meandros do teatro do mundo, que as altas partentes militares comandam dos céus.

Por uma série de curiosas coincidências, no mesmo ano, 1970, apareceram dois filmes que apresentaram a guerra sob o seu lado mais irrisório: um, "Catch 22", adaptado da novela de Joseph Heller, olhar corrosivo sobre a insanidade do quotidiano claustrofóbico dos combatentes da II Guerra Mundial, um contraponto anti-épico à maioria dos romances inspirados pelo conflito; o outro, "M*A*S*H*", carregava no humor negro e, baseando-se nas aventuras disparatadas de uma unidade médica na guerra da Coreia, iniciava um novo modo de filmar a acção, com uma irreverente reformulação da montagem, e impunha o nome de Robert Altman como "cineasta maldito".

Por muito que se queira individualizar os objectos cinematográficos e lê-los como mera pulsão estética, não poderemos esquecer que as "coincidências" tinham antecedentes políticos: tudo se passava no estertor do conflito do Vietname, em que os EUA se viam a braços com uma humilhante derrota táctica, muito longe das heróicas figurações de salvadores da democracia, em 39-45, e, mesmo, a milhas-luz da encarnação de resgatadores do Ocidente não comunista, na longínqua Coreia, intervenção "a quente" no auge da Guerra Fria.

Já muito se especulou sobre o facto de o cinema americano, tão rápido a criar ficções sobre as guerras em que se envolvia, apenas ter produzido um grande filme de propaganda sobre o Vietname, "Os Boinas Verdes", com o "couraçado" John Wayne a dirigir as operações, deixando para depois do conflito ("O regresso dos heróis", 1978; "Apocalypse Now", 1979; "Platoon", 1986; "Nascido a 4 de Julho", 1989) o lento ajuste de contas com as feridas abertas pela desonrosa retirada.

Talvez por isso, mesmo quando viarava contra si o esgar da ironia carnavalesca, a América sentia a necessidade de tomar por pano de fundo, para a paródia, um contexto de vitória.

A guerra dos electrodomésticos

Por quê tão longa contextualização para falar de "Três Reis", que nem aborda o território tabu do Vietname, nem revisita o imaginário positivo dos conflitos em que os americanos se representaram (quase) sempre como os bons da fita? Porque o filme de David O. Russell transfere para a Guerra do Golfo a problemática de desenraizamento do combatente, perante uma cultura que não entende, e responde com invulgar truculência a um momento privilegiado de introspecção do aparelho ideológico americano, num tempo em que os EUA "comandam" o mundo de forma unilateral.

E, no entanto, as intervenções no Golfo, na Somália ou nos Balcãs só chegam às telas pela via transvessa de "thrillers" menores ou de divertimentos de acção, para substituir a defunta Guerra Fria enquanto pretextual pano de fundo. Os grandes filmes de guerra, como "O Resgate do Soldado Ryan" ou "A Barreira Invisível", continuam a privilegiar o seguro terreno mítico de 39-45. Ora, o que Russell "descobre" é as potencialidades do conflito-espectáculo da primeira confrontação filmada em directo pela televisão, para questionar a sanidade das instituições e a lógica interna da mais sólida democracia do mundo.

Para tanto, nem precisa de fazer apelo à intrusão do irrisório: toda a manobra política por detrás da Guerra do Golfo é um disparate pegado, uma acumulação de contradições insolúveis. Washington apoia Saddam Hussein contra o fundamentalismo chiita do Irão, para logo depois se socorrer do apoio tácito de Teerão para demonizar o Iraque, que invadiu o anti-democrático e riquíssimo Kwait, abandonando de seguida os oposicionistas a Saddam por receio de favorecer os radicais iranianos. Em si mesmo, este imbróglio estratégico daria uma comédia de asneiras. Apenas falta justapor-lhe uma história exemplar de ambição e de desajustamento, com um grupo de militares subalternos que descobrem um suposto mapa de "bunkers" recheados de tesouros entalado no rabo de um prisioneiro.

A primeira sequência estabelece os dados da questão de forma estarrecedora: um prisioneiro, que se rendera, é abatido a sangue frio, por mera suspeita de reacção defensiva, e o seu corpo ensanguentado aparece exibido como raridade num conflito sem mortos visíveis. A demência da vitória-relâmpago estende-se depois às contra-ordens, à aparente ausência de liderança, às trocas de favores sexuais entre os militares e as jornalistas que eles escoltam, ao delírio dos soldados, atrasados mentais alcoolizados sem qualquer noção do terreno que pisam.

Só que, ao contrário de "M*A*S*H" ou de "Catch 22", não aparece qualquer alteração surrealizante. Tudo parece, pelo contrário, encaixar numa coerente leitura realista da situação: surrealista é a própria intervenção desconexa das forças militares. Quando, na sequência fulcral do ataque à aldeia, em que se encontram os tesouros, deparamos com os electrodomésticos amontoados, antes da descoberta das procuradas barras de ouro, percebemos que já estamos para lá de qualquer barraira de sanidade.

Por isso, já não nos espantamos quando Troy (Mark Walberg), prisioneiro dos esbirros de Saddam, experimenta vários telemóveis até encontrar um com o qual telefona para os States, para a mulher, afim de lhe dar as suas coordenadas e poder ser salvo. Nem estranhamos que um pequeno grupo de soldados americanos, capitaneados pelo desnorteado Archie Gates (espantosa composição de George Clooney, entre o desconchavo burlesco e um comovente registo melodramático, no final) domine um destacamento de inimigos, tendo acesso fácil ao esconderijo.

Contudo, o riso transforma-se em esgar e o divertimento descamba em ácido sulfúrico. Os "três mosqueteiros" de uma guerra que nunca existiu porque já acabou, confrontam-se do alto da sua inconsciência e da sua impreparação política com os meandros do teatro do mundo, que as altas partentes militares comandam dos céus. Os Rolls Royce do deserto, ou os descapotáveis de último modelo sacrificados aos "gags" de uma comédia amarga e demencial dão lugar à dura encenação dos interesses que ultrapassam as boas intenções das personagens.

Os aliados ocasionais, salvadores da pele dos temerosos salteadores do ouro perdido e inimigos do ditador Saddam, são descartados pela hipocrisia tragicómica do sistema como insignificante carne para canhão. E nem o providencial final feliz, a resgatar a comédia de inescapável negrura, desfaz o gosto ácido, a incompreensão, o ódio aberto às instâncias militares, que fazem do mundo o seu terreno de jogos perigosos, o seu perímetro de letais experiências sobre a loucura instituída em norma. É que nesta fabulosa comédia negra (e não só) os militares estão mesmo loucos.

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