Em território de Manoel de Oliveira (e de Agustina), Paulo Rocha revisita as profundezas do seu próprio imaginário de cineasta. Deslocou-se da Lisboa em crescimento selvagem de "Verdes Anos" ( ) e das brumosas terras da ria de Aveiro de "Mudar de Vida" ( ) para os penhascos agrestes do Douro, um rio transformado em mito pela intensidade da loucura e do desejo. Em todas as componentes desta trilogia impossível e descontínua, avulta a presença da desmesura fantasmática de Isabel Ruth, agora acentuada em máscara, bela e mortífera como as heroínas trágicas de Eurípedes ou como as Valquírias da tradição épica germânica.
"O Rio do Ouro" é uma história dourada e sanguinária que se escreve nas margens do Douro, rio de muitas fainas e de muitos ceremoniais. Uma guarda-cancela, Carolina (Isabel Ruth), conserva velhos mistérios de amores passados, e de crimes esquecidos, e casa com um barqueiro (Lima Duarte) que draga lodos e mortos do fundo do rio, emigrante sem nervo e sem competência sexual. Um vendedor de ouros (João Cardoso) tem poderes mediúnicos e passeia a sua impotência emocional como um garanhão em perda pelas mulheres acossadas de beira Douro - a guarda-cancela e a afilhada, Melita (Joana Bárcia). Um crime onírico resgata um casamento falhado e faz voar por sobre as fragas uma megera, mais fêmea do que sibila, tão vítima dos fados e dos oráculos, quanto justiceira de uma ancestral insatisfação. O plano inicial das lavadeiras que cantam remete irresistivelmente para as filhas do Reno da tetralogia wagneriana, "O Anel dos Nibelungos".
A configuração mítica do filme não desmerece desta analogia em versão lusitana: à grandeza do melodrama operático contrapõe-se a miniatural dimensão da cantiga de cego - interpretado pelo autor da banda sonora José Mário Branco - e do conto oral musicado com os requintes do cancioneiro popular. E como "a gente volta sempre ao princípio" (é uma citação do filme), o epílogo representa o regresso às águas do rio, devolvendo-lhe o ouro mítico, não roubado por uma conspiração de anões ou de gigantes como em Wagner, mas retirado ao nome Douro, cuja origem se perde nos tempos. O anel wagneriano, porém, transformou-se aqui em cordão de ouro, fio de sangue, cadeia de submissão e de desejo não consumado, marca de poder e amuleto de morte.
A ladaínha e reza à Nossa Senhora das Águas domina este provinciano crepúsculo de pequenos deuses domésticos e cristianiza a pulsão antiga de ligar ao rio a carga divina de criar e destruir: o belíssimo plano do rabelo enquadrado pelas árvores ou a sequência da barca à deriva entre remoinhos encenam essa ligação umbilical ao rio dos desenganos.
Quase tão seminal como a corrente do rio nesta ficção duriense, aparece o comboio, elo de ligação com a cidade grande, representada, sobretudo, como local de junção ao mar. É no comboio que surge a primeira grande transfiguração a prenunciar o crime de sangue, com os reflexos do ouro a extravasarem em luzes amareladas para o plano. A voz do sangue que grita impele a fuga do Zé dos Ouros, deixando na mão da jovem grávida e da sua voraz madrinha o mágico e letal cordão.
E na antecâmara da cidade que é o átrio vazio da estação de S. Bento ecoa a voz do cego, caricatural Tirésias de trazer por casa, que canta o crime hediondo. Pela deformação sonora desta cena passa também o excesso em crescendo, rumo ao clímax trágico. O cego-corifeu regressa logo a seguir misteriosamente transportado ao palco da acção, acompanhando a linha do comboio, que a personagem de Isabel Rute controla por profissão. O antinaturalismo do trabalho fotográfico, como a desfiguração do som, contribuem, de forma decisiva, para este tom de fantasmagoria com que o filme tranfigura o documental.
Como antepassados reconhecidos, perpassam por "O Rio do Ouro" as sombras de Agustina e de Oliveira, mas também a do Camilo das paixões funestas e, quantas vezes, sanguinárias: a novela radiofónica (o som pela imagem) adaptada de "Francisca" cumpre o dever da tripla dedicatória. No entanto, a narrativa aspira a outros voos, entre a serenidade (sempre falsa e turbada) filtrada de "Une Partie de Campagne", de mestre Jean Renoir, com quem Paulo Rocha estagiou em "O Cabo de Guerra", e a convulsa solução final com o surrealizante planar de Carolina por sobre o rio. É como um olhar de pássaro ou de deus sobre o cenário da tragédia. Antes já a casa parecia ir levantar voo a qualquer momento, apenas à espera do grão de desmesura que leva a personagem a inverter os papéis sexuais e a penetrar com a faca o corpo do velho marido - absoluta a contenção de Lima Duarte, quase a apagar-se para conseguir uma vil tristeza para a sua personagem.
Num filme em que se afirma que o corpo nunca mente, os corpos existem também para se esvaziarem de substância, cumprirem a figuração mítica que o seu manipulador lhes destinou: os reflexos no espelho, a feminina concupiscência do mercador de ouros, herói masculino possível desta tragédia de mulheres, ou o modo onírico como se cumprem os rituais do desejo são disso prova. Se o tango dançado pelo par, precedendo o acto sexual que se elide, possui perturbante sensualidade, só na sequência da noite de S. João, pagã revisita às festas do solstício de Verão, encontramos a suprema volúpia da dança e da relação entre corpos.
Mais uma vez a música pauta o movimento do melodrama: as orvalhadas sanjoaninas aparecem investidas de forte carga erótica, ligada às fogueiras e uma atmosfera mágica de sonho alucinatório. Tudo está preparado para o sacrifício da afilhada, coberta de mel e oferecida às abelhas, para o assassinato ritual do marido e para a cerimónia tribal de aspergir o sangue nas portas e no rosto. Qual sacerdotisa de antiquíssimo culto, Nossa Senhora dos Ares, Isabel Ruth preside do seu altar volante ao apaziguamento dos elementos naturais, ao triunfo da morte anunciada. Dos ares descemos ao leito nupcial do rio, onde Melita, qual Nossa Senhora das Águas, procura com o cordão de ouro o seu par, como se lhe fosse oferecer fúnebre grinalda de noivado eterno. O sortilégio dos amores impossíveis cumpre-se na morte.