Artesão da melancolia

Com "Erin Brockovich" Steven Soderbergh afirma-se como o melancólico artesão de um género em extinção: a rotina da indústria amorosamente tão pouco rotineira. Chegou-se a pensar que Steven Soderbergh estava condenado a ser uma invenção. E que essa fatalidade lhe tinha sido marcada numa edição do Festival de Cannes, quando o presidente do júri, Wim Wenders, atribuiu a Palma de Ouro a "Sexo, Mentiras e Vídeo" (1988).

Um desconhecido subitamente aclamado com um filme que condensava os sinais do tempo e dos afectos? A partir daí seria sempre a descer, brincou o próprio Soderbergh quando subiu ao palco de Cannes. Foi uma premonição: os sucessivos desastres comerciais e insucessos críticos (de "Kafka" a "King of the Hill") ou uma vertente experimental ("Schizopolis") nada fizeram para identificar o lugar de Soderbergh na indústria. O cineasta "desapareceu", esboroou-se como as marcas do tempo, ficou sem contornos.

Até que, dez anos depois de "Sexo, Mentiras e Vídeo", surgiu "Out of Sight", com George Clooney, um dos mais belos filmes americanos de 1998. Soderbergh parecia querer redefinir-se, e deixava-se embalar enquanto filmava, como se tivesse redescoberto o "artesanato" cinematográfico. Sobretudo com uma humildade tão serena como a dos artesãos da era clássica de Hollywood. Depois houve "The Limey", com Terence Stamp e agora, confirmando o ímpeto produtivo e criativo, há "Erin Brockovich", que domina há três semanas as bilheteiras americanas - haverá ainda "Trafic", com Michael Douglas, e "Oceans 11", "remake" de um veículo para Frank Sinatra, num projecto que agora é para Clooney.

Erin Brockovich" é um veículo para uma vedeta - Julia Roberts - e nunca o esconde. De "autor", Steven Soderbergh transformou-se então em "tarefeiro"? Não é o caso de uma Gata Borralheira transformada em Cinderela - esse é o caso de Roberts -, é o caso de uma abóbora que se transformou em príncipe. E não é uma triste história de anulação, é um caso feliz de decantação. O realizador está ao serviço da estrela e do argumento, sim, mas se a Julia Roberts deste filme é a súmula das Julias dos outros filmes (a "bimba" que ascende a "rainha"), esse processo é de depuração e nunca antes Julia foi tão controlada e - por isso, mais simpática do que em outros filmes - tão alheia ao seu "carisma" de estrela. Não há subserviência de Soderbergh, mas, como na era do "studio system", uma crença na ilusão que possibilita o trabalho do "amador" - aquele que ama - das matérias de um filme (o "estrelato" é apenas uma delas, dado tão material como o argumento, a luz ou o som).

Filme de um amador de cinema, "Erin Brockovich" mostra, além disso, um realismo muito estranho para uma obra baseada numa "história verídica". Podemos pensar no que outros fizeram com uma história assim de uma "proletária" de unhas espetadas contra as injustiças do mundo. Pense-se no que fez Martin Ritt, em "Norma Rae", para a histeria de Sally Field; pense-se em veículos para os diversos sotaques de Meryl Streep, e compare-se.

"Erin Brockovich" recusa ficar refém da "história verídica" e coloca-se numa terra de ninguém, mais próxima da fábula, mas de qualquer forma um lugar tão indefinido quanto sedutor. Há uma crueza (na luz, nos décores, na movimentação dos actores, nos sons da "realidade", nunca abafados pela música) que parece propositadamente travar o artifício - o lado mais "gritante" da personagem (os sapatos, os vestidos, o calão), por exemplo, nunca é anedotário, é um catálogo de sugestões. Simultaneamente, há uma leveza que se instala, pela recusa das "causas" e das suas demonstrações - e sendo esta a história da luta de uma pequena empresa de advogados contra uma corporação americana, nunca o filme se interessa pelo processo, ou pelo cenário habitual dele, o tribunal.

A este território puramente cinematográfico, que só existe entre personagens de cinema, e onde Soderbergh trabalha o pudor e a distância que fizeram a marca do classicismo americano, pertencem a relação entre Erin e o seu patrão da empresa de advogados (Albert Finney), uma dupla de amáveis "loosers" como os que povoavam "Jackie Brown", de Tarantino, e que aqui são também transportadas ao colo pelo realizador; ou a relação entre Erin/Roberts e o namorado George (Aaron Eckhart), que, subtil e muito afectuosamente, derruba as figurações tradicionais do casal: sem nenhum "statement" transgressor, ela é o homem da casa e ele, "easy rider" por vocação, torna-se a "baby sitter".

Se Julia Roberts "é" Erin Brockovich, ela é, também, ela própria, numa frágil mistura de "naturalismo" e "artificialismo" em que se equilibra o filme - a "falsa" e a "verdadeira" Erin aparecem lado a lado, na cena do restaurante em que a personagem come com os filhos, e, contou a actriz, a verdadeira Erin, que faz aí um "cameo" como empregada, tinha escrito na sua placa de identificação o nome "Julia".

"Erin Brockovich", uma história com "mensagem" transformada em divertimento, é um objecto "menor", e não tão fulgurante como "Out of Sight". Mas tornaram-se tão raros objectos que assim nos chegam de Hollywood - uma rotina de indústria amorosamente tão pouco rotineira - que Soderbergh não pode deixar de ser um artesão da melancolia.

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