Sabe-se pouco, e imagina-se muito, sobre a vida de William Shakespeare. Então "e se...?". A partir daqui o argumento de "A Paixão de Shakespeare" parte para uma falsa biografia que trata Will por "tu", coloca-o no divã psicanalista com um bloqueio criativo e até encontra o modelo de uma Julieta. Londres no século XVI é o campo de hipóteses de um jogo virtual ? na maior parte das vezes, também, de um jogo superficial de trocadilhos culturais. O líder nas nomeações aos próximos Óscares estreia-se hoje em Portugal. William Shakespeare, segundo um académico, "era certamente homossexual, bissexual e heterossexual" e, por isso, como não se sabe nada e até se suspeita que era calvo e desde cedo deixou crescer barriga, é fácil "preenchê-lo" com a sensualidade jovial e impetuosa ? e obviamente heterossexual ? de Joseph Fiennes. Pensa-se que teria uma musa, a "dark lady", a quem dedicou 25 sonetos (publicados em 1609) e que ? como o título indica ? seria morena e ? como o título não indica ? casada com um estalajadeiro. Por isso, é loura (Gwyneth Paltrow), chama-se Viola de Lesseps, é aristocrata, quer fazer teatro e disfarça-se de rapaz para poder entrar no palco isabelino exclusivamente masculino. Como Viola está prometida em casamento a Lord Essex (Colin Firth) e vai partir para o Novo Mundo, temos então amor condenado que Will pode esconjurar através da escrita. E assim a peça que um bloqueio criativo impede de terminar, "Romeu e Ethel, a Filha do Pirata", título que prenuncia o fracasso, transforma-se no triunfal "Romeu e Julieta". Mas fica material para mais: a comédia de enganos e a troca de sexos permite-lhe iniciar "Twelfth Night"/ "Noite de Reis", e é assim que deixamos William no final de "A Paixão de Shakespeare". A culpa, digamos assim, foi do filho de Marc Norman, argumentista, que depois de uma aula sobre teatro isabelino perguntou ao pai o que é que teria levado Shakespeare a escrever a "maior história de amor de todos os tempos". Norman, com a ajuda de Tom Stoppard, que já tinha procedido a algumas invenções a partir de "Hamlet" ("Rosencrantz and Guildenstern are dead"), deitou então mãos à obra a mais um projecto ? têm sido vários nos últimos tempos ? de uma vaga que promete continuar, que terá méritos pedagógicos (tornar acessível um autor que no século XVI enchia as plateias de gente ávida de drama e de sangue), que acusa certamente alguns complexos culturais (o que na pior das versões dá "Shakespeare contado aos pequeninos"), mas que poderá dar hipóteses ao jogo e a alguma invenção. Recorde-se o expoente desta súbita revelação de Shakespeare como ícone pop que foi "Romeu e Julieta", de Baz Luhrmann (1996), que actualizava o guarda-roupa (era uma "versão MTV", disse-se), mas queria chegar à verdade profunda, dramática e escabrosa do texto e dos tempos de Shakespeare. Em "A Paixão de Shakespeare" é ao contrário: os vestidos são da época; e, se tudo se passa num espaço e num tempo conquistados por alguns anacronismos ? Norman e Stoppard, nesta estratégia de tratarem Will por "tu", colocam-no a correr para o divã do psicanalista para tratar do seu bloqueio criativo, o que parece a invasão de tiques "freudianos" de um filme de Woody Allen ?, o filme transpira um estranho odor de neutralidade. É sobre Shakespeare? O mundo é o das convenções da comédia romântica americana. Se o maior consenso é que Shakespeare nasceu em 1554, em Stratford-upon-Avon, que aos 18 anos estava casado, que teve três filhos e que morreu em 1616, aproveita-se o desconhecimento da sua vida no período, propício a conjecturas, entre 1585 e 1592, antes de emergir como figura pública em Londres (1594 foi o ano da reviravolta, com "Romeu e Julieta"), para uma fantasia que mistura personagens reais e fictícias. A proposta até é engenhosa: as ruas tumultuosas da Londres, no reinado de Isabel I, a Rainha Virgem, da explosão urbana, comercial e da descoberta do teatro como entretenimento para as massas, podiam ser o palco de uma cidade de cinema dos anos 90 do século XX. Os empresários pressionam a criatividade de Shakespeare a dar-lhes um êxito para alimentar as bilheteiras, tal como se passa hoje nos bastidores de qualquer Hollywood. E, se as mulheres não podiam aceder aos palcos do mundo dos homens, hoje qualquer "leading lady", como Meryl Streep, também dirá que "não há bons papéis no cinema para mulheres". Ben Affleck, que interpreta a personagem de Edward Alleyn, o actor "fétiche" de muitas das tragédias de Marlowe, faz uma personagem muito impressionada consigo mesma, como se fosse "o Tom Cruise do teatro isabelino". O mais curioso disto poderá ser, então, considerar que "A Paixão de Shakespeare" cria espaço, a partir das marcas da época, para as hipóteses infinitas de um mundo virtual, impreciso. O limite ? é a neutralidade de que se falava ? é que nesse mundo virtual ninguém passa "para o lado de lá", o jogo é superficial, trata-se apenas da mera insinuação das possibilidades. Para além disto, Shakespeare é, hoje, uma espécie de "franchising", uma marca que se pode multiplicar numa cadeia comercial, e então cada época tem o Shakespeare que merece. "A Paixão de Shakespeare" é o Shakespeare do cinema independente americano. Como tal, um reflexo do seu estado. Produzido pela Miramax, surpreendente sucesso no mercado americano, surpreendente açambarcador de nomeações para os Óscares (13), foi realizado por John Madden, a quem a Miramax já tinha produzido o muito convencional "Mrs. Brown". Tem os actores que são as vedetas da casa ? Affleck e Paltrow, que parece que estão a ensaiar Shakespeare na escola (compare-se com aquilo que fez Baz Luhrmann, isto é, o "desfasamento" de Leonardo di Caprio e Claire Danes, em "Romeu e Julieta"); e tem Ruppert Everet a fazer de Marlowe, o rival de Shakespeare, como se estivesse numa daquelas comédias em que faz o "outro", o amigo ? invariavelmente "gay" ? que olha de soslaio para a acção. O favoritismo de Gwyneth Paltrow (já vencedora do Globo de Ouro na categoria de comédia) para os Óscares será baseado numa "presença" mais do que numa "interpretação". Provavelmente a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood consagrará, através dela, esse espaço neutral ? porque já não permite distinções nítidas entre o "mainstream" e a "diferença" ?, familiaridade onde se tem refugiado o sucesso dos independentes americanos. E vai continuar a "renaissance" de Shakespeare em Hollywood, cujo começo podemos localizar no "Henrique V", de Kenneth Branagh, em 1989. Vem aí uma versão de "Titus Andronicus" com a acção a terminar no ano 2000, filme realizado por Julie Taymor, a mulher responsável pelo sucesso e delírio na Broadway de "O Rei Leão". O actor Ethan Hawke acabou de fazer um "Hamlet" contemporâneo, no mundo das grandes corporações. E Branagh vai reincidir, também através da Miramax, com uma versão musical de "Labour?s Lost Love", com um "Macbeth" passado em Wall Street e com "As You Like It" a decorrer no Japão.
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