O Brasil vota hoje para decidir se "agora é Lula"

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A emoção com a possibilidade da mudança impôs-se à racionalidade fria dos programas Marcelo Hernandez/AP

"Agora é Lula". A frase lê-se nos muros que protegem as casas da classe média de Salvador da Bahia, em autocolantes que decoram automóveis de alta cilindrada nas ruas elegantes de São Paulo, nos tabuleiros dos rapazes pobres que vendem cigarros avulsos no bairro boémio da Lapa, no Rio de Janeiro. A onda vermelha do Partido dos Trabalhadores (PT) e a imagem do seu candidato, Lula da Silva, tomou conta do Brasil, uniu as aspirações de pobres e miseráveis, da favela e do "asfalto", de jovens irreverentes e de conservadores empedernidos e conquistou uma imparável dinâmica de vitória.

Se na campanha da primeira volta Lula era apenas o candidato favorito, o afastamento de Ciro Gomes e de Anthony Garotinho transformou-o num "Messias" que há-de recuperar o sonho dos 170 milhões de brasileiros. Como o próprio Lula reconheceu esta semana, "só um cataclismo" evitará a sua eleição, hoje, como sucessor de Fernando Henrique Cardoso (FHC) na presidência da República do Brasil.

Numa sociedade que ainda não sarou todas as feridas da ditadura militar (1964/1985), Lula fez o impossível: conseguiu manter a seu lado as alas mais radicais do Partido Comunista do Brasil e os herdeiros da aliança que cimentou o poder dos militares, como Paulo Maluf ou António Carlos Magalhães. Foi capaz de unir operários sindicalizados da cintura industrial das grandes cidades com os empresários conservadores que militam na Fiesp, a poderosa associação das indústrias de São Paulo. Conseguiu juntar em seu torno oligarcas como José Sarney, do Maranhão, com influentes pensadores de esquerda dos anos 50 e 60, como Celso Furtado.

Um país sempre adiado

Basta olhar as notícias da última semana para se entender porque é que Lula, o ex-radical a quem até a esquerda de Leonel Brizola um dia apelidou de perigoso "sapo barbudo", consegue federar sensibilidades políticas tão extremas: na quinta-feira, em São Salvador da Bahia, um homem com tuberculose e esvaindo-se em sangue teve de esperar quatro horas no chão do hospital à espera de uma vaga nas urgências; três dias antes, na terça-feira, a espiral de violência que gangrena o Rio de Janeiro provocou mais cinco mortos; um deputado federal eleito pelo Acre foi preso num hotel de luxo de Brasília acusado de ter subornado eleitores com prémios em dinheiro; as televisões mostraram por sua vez filas intermináveis de desempregados nos centros de emprego de São Ciro. Não se mencionou vez alguma a fome no Nordeste, mas os brasileiros sabem que milhões de crianças sofrem de subnutrição e morrem muitas vezes com a falta dos mais elementares cuidados médicos.


"O Brasil entrou no século XXI sem ter resolvido o grande desafio histórico do seu subdesenvolvimento", escreveu o sociólogo Hélio Jaguaribe, um dos fundadores do Partido da Social Democracia do Brasil (PSDB), juntamente com FHC, e nunca como hoje as elites se juntaram tanto aos deserdados para partilhar esse problema. Como o mostrou a marcha dos "100 mil", ou como se detecta nas palavras de ordem dos músicos que enxameiam os bares do Rio ou de Salvador, hoje o Brasil tem vergonha de ser a segunda nação do mais desigual do mundo depois da Serra Leoa e está convencido que o modelo aberto e liberalizante de Fernando Henrique Cardoso não é capaz de resolver as contradições sociais do país.

A desilusão com Fernando Henrique

Os brasileiros acreditaram que o sonho da modernidade e da justiça social aconteceria com o regresso da democracia e em 1984 envolveram-se em massa na campanha pelas eleições directas. O desastre da governação Collor deitou tudo a perder. Depois, acreditaram no discurso aberto e novo de FHC e se o sucesso do Plano Real lhes acabou com o pesadelo da inflação, que rondava os 2500 por cento ao ano em 1994, o fraco desempenho económico (crescimento de 2,4 por cento ao ano), os escândalos políticos recentes e a persistência da desigualdade e da miséria fizeram com que todas as expectativas fossem depositadas num candidato que está longe de satisfazer as convenções políticas tradicionais.


Essa desilusão com a herança de FHC não resulta apenas do facto de não sido capaz de atacar a fundo o subdesenvolvimento do país. Os brasileiros da classe média preocupam-se talvez mais com escalada do desemprego, que afecta 12 milhões de trabalhadores, com o abaixamento dos rendimentos das famílias para os níveis de 1994 (aproximadamente 250 euros), ou com a persistente insegurança nas grandes cidades, que elevou o número de homicídios para 40 mil no ano passado.

Foi esse mal-estar que fez com que os eleitores se dispusessem a arriscar tudo na "mudança", por muito que duvidem de um candidato que estudou apenas até ao quinto ano, que sempre apareceu ao eleitorado com um discurso radical, que elogiou Fidel Castro e promoveu organizações onde os guerrilheiros colombianos da FARC tinham assento. Muitos têm medo que o seu discurso rompa a grande conquista de Fernando Henrique: a estabilidade política e a credibilidade internacional. Mas, apesar de todos os receios, até os brasileiros moderados acreditam que pior que tentar a mudança é insistir na continuidade.

No fundo Lula e o PT souberam cavalgar o descontentamento, abrindo o partido para além do seu tradicional universo de 30 milhões de eleitores e fazendo promessas que vão ao encontro da ansiedade de um país descrente e cansado - as comemorações dos 100 anos do nascimento de Juscelino Kubitschek, o presidente que entre 1956 e 1960 se propôs a vencer "50 anos em cinco" e que mandou construir Brasília, estão a ser usadas como um antídoto a esse estado de alma.

Os comícios do PT responderam cirurgicamente a essa vaga de descontentamento e a essa sede de mudança. Lula falou da "auto-estima", prometeu justiça, falou ao coração. A emoção com a possibilidade da mudança impôs-se à racionalidade fria dos programas. Hoje deverá mostrar nas urnas como esta fórmula resultou.

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