Stanley Ho, o magnata que “não sabia dizer que não a Portugal”
Lembrado como “um amigo de Portugal”, Stanley Ho, dono dos mais conhecidos casinos macaenses e portugueses, tinha uma fortuna avaliada em quase seis mil milhões de euros. Morreu aos 98 anos.
Stanley Ho, que construiu um império do jogo em Macau, tornando-se num dos mais ricos da Ásia e um grande investidor em Portugal, morreu esta terça-feira, 26 de Maio, aos 98 anos. Desde que teve uma queda em 2009, que lhe provocou um traumatismo craniano, afastou-se da vida pública, e da condução dos negócios. Nos últimos anos estava já incapacitado.
O magnata, conhecido como alguém muito perspicaz e um hábil negociador, adorava dançar e aconselhava os mais próximos a manterem-se longe do jogo. Detinha uma fortuna pessoal estimada em 6,4 mil milhões de dólares (ou 5,9 mil milhões de euros), de acordo a informação disponível em 2018, ano em que se reformou oficialmente, escreve o South China Morning Post.
A empresa mais conhecida de Stanley Ho é a Sociedade de Jogos de Macau (SJM), ligada à Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM) e dona da e de 19 casinos em todo o mundo, incluindo o veterano casino do Hotel Lisboa e o Grand Lisboa; e, via grupo Estoril Sol em Portugal, o Casino de Lisboa, o Estoril-Sol e o da Póvoa do Varzim. Mas os negócios não se limitam ao jogo: passam também por sectores como imobiliário, banca, hotéis de luxo e transportes.
A SJM/STDM foi a única autorizada a gerir casinos em Macau durante quase 40 anos. Nos seus melhores anos, o império de Ho chegou a representar metade das receitas (via impostos) do Governo de Macau.
O negócio mudou em 2002, quando a China acabou com o monopólio e lançou um concurso para liberalização do sector e a entrada de vários operadores – três anos após Portugal ter deixado a região. Os norte-americanos e australianos fizeram-lhe concorrência, mas estavam longe de lhe roubar a hegemonia e o empresário manteve-se em jogo, nomeadamente através dos filhos Pansy e Lawrence, que se juntaram aos novos intervenientes. Em 2017, o jogo em Macau movimentou 27 mil milhões de euros.
O nome de Stanley Ho já estava inscrito de forma indelével na história da transformação de Macau numa das maiores capitais do jogo mundiais. Os feitos na região, que ajudou a desenvolver e a transformar ao longo dos anos com base das receitas do jogo, valeram-lhe uma avenida com o seu nome: foi o primeiro macaense a receber tal distinção em vida. Esta terça-feira, o chefe do executivo da região, Ho Iat Seng, citado pela Lusa, destacou Ho “pela dedicação à causa social e à filantropia, pelo seu valioso contributo à prosperidade e à estabilidade de Macau”.
Renascer em Macau
Nascido a 25 de Novembro de 1921 em Hong Kong, Stanley Ho era um dos herdeiros da abastada família Ho Tung, de ascendência chinesa e europeia. O dinheiro, no entanto, não durou muito: o pai de Stanley Ho perdeu tudo no mercado de acções e fugiu para o Vietname, abandonando mulher e filhos. Stanley, na altura com 13 anos, ficou sem nada — o que não o impediu de conseguir um lugar na Universidade de Hong Kong. Em 1941, fugido da invasão japonesa a Hong Kong, em plena II Guerra Mundial, e radicou-se na então portuguesa Macau (Portugal manteve-se neutro na guerra). “Tive muita sorte”, recordou em 1999 ao Jornal de Notícias.
Combateu ao lado dos britânicos, assistiu à vitória dos japoneses, e acabou por recorrer a um tio que estava na região administrada por Portugal.
“Ele disse-me para ir para lá porque me arranjava emprego”. Depois de 13 horas de barco, atingiu o seu objectivo, e acabou por trabalhar para a maior companhia que ali existia então, The Macau Corporative Company, da qual 1/3 era do Estado português. A tarefa era “satisfazer todas as necessidades de Macau”, nomeadamente alimentares, dando em troca aos japoneses tudo o que eram excedentes da região portuguesa. “Durante três anos trabalhei arduamente”, afirmou. Depois disso, ficou rico. “Fiquei milionário aos vinte anos”, recordou ao Jornal de Notícias.
Em 1962, deu o grande salto em frente, ao ganhar a concessão do jogo, juntamente com alguns sócios. Pelo caminho ficaram os concorrentes que lutavam pela renovação, o clã Fu Tak lam. De acordo com uma reportagem do Expresso de 1992, “chamaram-lhe doido e ameaçaram-no de morte”, mas ganhou. E dinamizou o jogo, e a região, levando os apostadores, que não podiam estar em mais lado nenhum (os casinos não são permitidos na China), com novos barcos, que reduziam para metade o tempo de viagem entre Hong-Kong e Macau.
Pelo meio ficaram rumores de ligações às tríades, a máfia local, algo que Stanley Ho sempre rejeitou. “Não é verdade que haja acordos ou compromissos [em Macau] com as tríades. Elas podem actuar em Macau, mas eu deixo essa questão totalmente com a polícia”, afirmou ao Expresso numa entrevista em 1992.
Stanley Ho teve 17 filhos, de quatro mulheres. A primeira, a macaense Clementina Leitão, única com quem de facto casou, em 1942, já morreu. Robert, o primogénito, e sucessor, também já faleceu, na sequência de um desastre de carro na estrada marginal de Cascais, no início da década de 80.
Clementina Leitão foi uma das peças fundamentais do seu sucesso. Também conhecida como “Tininha”, era filha de uma das famílias de origem portuguesa mais influentes da região. O casamento permitiu-lhe entrar para o círculo da elite política de Macau, favorecendo os seus negócios na região.
O caminho de Stanley Ho entrecruzou-se, desde cedo, com o de Portugal. Para além de ser o accionista maioritário do grupo Estoril-Sol, esteve ligado à Fundação Oriente e criou em Portugal a Fundação Stanley Ho, ligada a “acções de carácter social, cultural, educativo e filantrópico” com enfoque no território português.
Manteve sempre boas relações com os governadores de Macau e políticos portugueses. Falava várias línguas — incluindo um pouco de português — e foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique e Comendador da Ordem do Mérito portuguesa. Tinha, aliás, um passaporte português.
Em Portugal, que visitava duas a três vezes por ano, é principalmente conhecido pelos casinos – controlados desde há vários anos pela filha Pansy Ho, com o apoio de Ambrose So, e onde está também presente Jorge Armindo.
O actual presidente não executivo da Estoril-Sol, Mário Assis Ferreira, que liderou o negócio dos casinos durante vários anos, lamentou a sua morte, elogiando, em declarações à Lusa, o carácter humanista e visionário daquele que considerava “um mestre”.
“É uma perda. Deixa em todos nós, aqui em Portugal, China, em Hong Kong e Macau a perfeita noção de sua excepcional personalidade, o carácter ímpar do seu espírito visionário e a dimensão do seu vulto empresarial”, destacou Mário Assis Ferreira, que assinalou também a “afabilidade e o sentimento humanista”.
Os negócios de Stanley Ho no mercado nacional, no entanto, passaram por vários sectores que não estiveram ligados ao jogo. Além de deter o controlo da Portline (transportes marítimos), foi accionista do Banco Português Atlântico, do Crédito Predial Português, do Millennium bcp e da EDP.
Outro investimento de relevo foi na área imobiliário em Lisboa, com o projecto da Alta de Lisboa. Jorge Ferro Ribeiro foi o seu parceiro nestes e outros negócios, recordando ao PÚBLICO que se cruzou com Ho em 1989, quando comprou 40% do grupo que tinha o Casino do Estoril à família Teles (ligada ao fundador daquela que foi umas grandes salas de jogo na Europa). O empresário macaense tinha os outros 60%.
Depois disso, a aposta virou-se para Oriente, tendo os dois sócios participado no programa de infra-estruturas de Macau, já a pensar na integração da região na China. Foi daqui que surgiram, com a dinamização de empresas estatais chinesas, infra-estruturas como o aeroporto internacional, o porto de águas profundas, a ponte de ligação entre Macau e a Taipa e o projecto imobiliário Lagos Nam Van (com cerca de um milhão de metros quadrados).
Jorge Ferro Ribeiro diz que foram estas obras que fizeram aquilo que Macau é hoje, e que o legado de Stanley Ho, “com muita obra feita”, fica “inequivocamente ligado às iniciativas que teve na área da filantropia do mecenato”, elencando a Fundação Oriente e Fundação Macau, “uma das maiores da Ásia”.
Recordando um “grande amigo”, um “visionário”, com “grande sentido de humor” e “óptimo desportista”, diz que era “um amigo de Portugal”, e também da China. Na sequência da integração de Macau na China, dinamizou o Fórum Macau, ligado à cooperação entre este país asiático e os países de língua portuguesa. Foi neste âmbito que, na área dos negócios, surgiu a Geocapital, reunindo de novo Jorge Ferro Ribeiro e Stanley Ho. Um dos seus administradores é Diogo Lacerda Machado. António Almeida Santos, antigo presidente do Partido Socialista, chegou a ser presidente da assembleia geral da empresa.
A dinamização dos negócios entre a China e Portugal protagonizada por Stanley Ho, diz Jorge Ferro Ribeiro, foi também determinante para os três grandes negócios que protagonizados há alguns anos por empresas estatais ligadas a Pequim: a entrada da CTG na EDP, da State Grid na REN e a da Sinopec na Petrogal Brasil. “Tentou sempre sensibilizar os grandes grupos chineses para investirem em Portugal”, destaca.
Ho “não sabia dizer que não a Portugal”
Nas eleições presidenciais de 2011, contribuiu com 22.500 euros para a campanha de Cavaco Silva, que conseguiu ser reeleito nesse ano. Já nas presidenciais de 2006 Stanley Ho tinha contribuído para a campanha de Cavaco Silva (com 20.000 euros) — mas também para a de Mário Soares, com o mesmo valor, conta José Filipe Pinto no livro Presidentes da República no Portugal Democrático (ed. Almedina, 2016).
Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente a quem Stanley Ho um dia chamou de “irmão”, não foi apanhado de surpresa com a morte do magnata do jogo de Macau, mas, “agora que já cá não está”, lamenta a perda do “irmão chinês” a quem não via há já quatro anos. “Stanley Ho fez muito por Macau porque Macau também fez muito por ele, e tinha um grande reconhecimento por Portugal porque tinha a consciência de que a sua enorme fortuna se devia à concessão do jogo em Macau”, afirmou Carlos Monjardino ao PÚBLICO.
“Ele não sabia dizer que não a Portugal por isso. Sempre que lhe era pedida alguma coisa, ele procurava fazer”, acrescenta, dando como exemplo o Casino do Estoril. “Era um ponto de honra ficar com ele, fazia questão de ter cá um pé no jogo e por isso ofereceu duas ou três vezes mais do que os outros concorrentes para ter a certeza que ganhava” a concessão, conta. Agora que a concessão está outra vez em negociação e Stanley Ho já não vai a jogo, o futuro do mais antigo casino português “é uma incógnita”.
Carlos Monjardino foi secretário-adjunto em Macau com responsabilidades na Economia, Finanças e Turismo e Encarregado do Governo, entre a demissão de Pinto Machado e a chegada de Carlos Melancia.
Entre os assuntos que decidiu estiveram a renovação do contrato de jogo em 1982, que não colocou em causa a concessão a Ho. “Mantivemos uma relação muito próxima devido às minhas funções, eu ia almoçar a casa dele, a Hong Kong, ele sabia o que se passava em Macau através de mim. Uma bela tarde, no terraço da sua casa, começou a contar-me coisas muito íntimas da sua vida e da sua família, e eu perguntei-lhe por que me contava aquelas coisas. Ele respondeu: porque o considero como meu irmão. E pronto, passou a ser o meu irmão chinês”, conta Monjardino. Viu-o pela última vez há quatro anos – “já ele estava muito limitado, mas ainda me reconheceu” – e trocou as últimas palavras ao telefone há cerca de três anos. “Estávamos à espera, mas nunca estamos preparados para a perda”.
O último governador português em Macau, Vasco Rocha Vieira, afirma que se perdeu “um homem amigo de Portugal e dos portugueses”. Em declarações à RTP, recorda-o como um homem “inteligente” e generoso que “ajudava sempre quem precisava” e que se mostrou sempre disponível “para contribuir par aos projectos da administração, principalmente no período de transição”. “Teve um relacionamento com as autoridades portuguesas de extrema correcção”, lembra.
Família fala em “modelo inspirador”
Também o cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong lamentou a morte de Stanley Ho, aos 98 anos, descrevendo-o como “um amigo da comunidade portuguesa em Macau”, que “sempre apoiou enquanto filantropo”, numa nota enviada à agência Lusa. Paulo Cunha-Alves salientou que “ao longo da sua longa e proeminente carreira, enquanto empresário e homem de negócios, Stanley Ho sempre demonstrou um apreço especial por Portugal”.
A família lembra-o como uma “figura maior do que a vida” e “modelo inspirador”. “Ensinou-nos a ver possibilidades em territórios novos e desconhecidos, a abraçar desafios com tenacidade e resiliência, a ser compassivo e empático, a retribuir à sociedade, a apreciar nossa herança cultural e, acima de tudo, a sermos patrióticos no nosso país”, lê-se numa nota enviada à agência Lusa, em nome das mulheres, filhos e netos. O “amado patriarca” morreu “pacificamente” em Hong Kong, “rodeado por todos os membros da sua família”, acrescenta.
No início de 2011, Stanley Ho acabou por ter de efectuar alterações profundas na estrutura do negócio, devido a uma batalha legal dentro da sua família. A sua terceira mulher, Ina Chan, e Pansy, Lawrence, Daisy, Maisy, e Josie, os cinco filhos da relação com a segunda mulher, Lucina Ho, ficaram com o controlo da Lanceford, a empresa familiar através da qual o magnata geria a sua fortuna ligada ao jogo. Ho tinha 100% das acções, mas, nessa altura, ficou apenas com 0,02%. Nada se soube sobre a redistribuição de activos perante os outros membros da família.
Numa das suas últimas aparições públicas, e de cadeira de rodas, Stanley Ho afirmou nessa altura, citado pela Lusa, após ter dito que todos tinham ficado “muito infelizes”: “Eu amo a minha família. Nunca nos processámos. O assunto foi resolvido”.