Deficiência. Atrasos na atribuição de assistentes pessoais desmoralizam quem espera há anos
Eduardo Jorge, tetraplégico, é um conhecido activista pelo direito à vida independente. E vai voltar aos protestos radicais. Não é o único a estar impaciente.
“Eu não aguento mais. Não quero esperar mais.” Ao fim de três anos num lar de idosos, onde não pertence, Eduardo Jorge, 56 anos, tetraplégico, está cansado. E vai protestar. Entre 1 e 4 de Dezembro, vai passar os dias e as noites deitado numa cama, fechado numa gaiola, em frente à Assembleia da República. Desafia Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e o ministro Vieira da Silva a serem os seus assistentes pessoais durante esse período.
Os dias estão planeados com detalhe, com base naquilo que são as suas necessidades diárias. E estão assim descritos numa carta aberta que nesta quinta-feira tornará pública: às 9h, higiene matinal — lavar a cara, tronco, zonas íntimas e desinfectar o dreno da urina. Pelas 13h, lavar-lhe as mãos, servir o almoço (uma sandes de queijo) e deixá-lo de costas. Às 17h é tempo de virá-lo para o lado esquerdo e servir uma banana. Às 21h, há que deixá-lo apoiado sob o lado direito e servir mais uma sandes de queijo para o jantar. À meia-noite, voltá-lo de barriga para baixo e despejar o saco da urina. É uma forma dolorosa de protestar, Eduardo sabe-o. Alguns amigos recusaram apoiá-lo por saberem o impacto negativo que tal iniciativa pode ter na sua saúde. Mas não se demove. “Estou desesperado. O que me resta é o meu corpo.”
O que o motiva é o atraso no chamado Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI), há muito prometido pelo Governo, materializado nos assistentes pessoais — financiados pelo Estado. São elegíveis pessoas com grau de incapacidade superior a 60% e 16 anos ou mais. Para algumas incapacidades específicas há outras regras.
O decreto-lei que institui o MAVI, um projecto-piloto que permitirá que algumas pessoas com deficiência tenham um assistente pessoal para a realização de tarefas básicas que não conseguiriam executar sozinhas, como alimentação ou higiene, foi aprovado no ano passado. Porém, “18 meses depois, nada aconteceu”. Na carta aberta onde explica as suas motivações, Eduardo Jorge nota que “esta prometida vida independente continua a não sair do papel”.
A publicação dos resultados das candidaturas ao MAVI está atrasada para as regiões Norte, Centro, Alentejo e Algarve. As respostas deviam ter chegado em 60 dias úteis, mas já passaram mais de 100. Lisboa é a única que está dentro do prazo porque as candidaturas abriram mais tarde.
“Infelizmente, a assistência pessoal ainda não é um direito”, lamenta Diana Santos, psicóloga e membro da direcção do Centro de Vida Independente (CVI) de Lisboa. Enquanto tudo isto demora, há “vidas à espera”. E nem só das pessoas com deficiência. Para se candidatarem ao projecto, as entidades tiveram de assumir contratos de promessa com os futuros colaboradores, pelo que também eles aguardam uma decisão.
Por enquanto, Diana Santos é das poucas que beneficia dessa independência e autonomia. É uma de cinco que integram o projecto-piloto de apoio à vida independente promovido pela câmara de Lisboa. Tem 34 anos e faz parte da iniciativa desde 2013. Foi isso que lhe permitiu emancipar-se dos pais. Hoje vive sozinha e conta com a ajuda de três assistentes que se distribuem ao longo do seu dia. “Tenho muito pouca autonomia, mas assim consigo trabalhar.” O projecto termina a 3 de Dezembro, mas tudo indica que será prolongado e que quem beneficia deste apoio actualmente não vai ficar sem ele.
Apesar do protesto que agendou para o início de Dezembro, por muito que Eduardo Jorge queira, de acordo com as regras existentes (e que ele contesta), não será uma das pessoas elegíveis para o novo programa. Tudo porque, há três anos, tomou a decisão de mudar-se para um lar da terceira idade, na Carregueira, perto de Abrantes, por não ter condições para contratar ele próprio um assistente pessoal que lhe garantisse todas as suas necessidades. Mas não foi uma decisão tomada de ânimo leve. Já sabia que ia ficar exposto a regras e horários que não o permitem ser verdadeiramente independente. “Faz parte da prisão.”
Neste ponto, Diana Santos também aponta críticas. “Mesmo aqueles que vivem num lar podem querer ter um assistente pessoal para fazer a sua vida.” O CVI vai bater-se por isso.
O lar onde Eduardo vive e trabalha como director técnico do centro de dia fica a 50 quilómetros de sua casa. Ainda lá vai, mas só em alguns fins-de-semana porque o táxi é caro (custa 110 euros ida e volta) e tem de garantir que há alguém disponível para cuidar de si. Ter trabalho é bom, diz. “É o que me faz esquecer que estou aqui.” Mas também nota que só o tem porque está institucionalizado. “É muito duro. Saio do trabalho e tenho de ficar cá.”
Os tempos livres são passados ora no interior do lar, ora na zona do pátio. O quarto, luminoso, tem uma janela que serve de porta para a rua, o que permite que saia e passeie pela horta e pelo perímetro que circunda o edifício. A cama é o sítio de que menos gosta. “Nada me chateia mais do que ficar na cama.”
Protesto que é para todos
É a partir deste lar que vai organizando o protesto — de resto, não é o primeiro. Em 2013 fez greve de fome em frente à Assembleia da República; em 2014 foi de Abrantes a Lisboa de cadeira de rodas. Sempre em nome da vida independente. Não se manifesta só por si. “Eu e muitas outras pessoas com deficiência continuamos presos nas nossas casas e em lares de idosos contra a nossa vontade.”
Para Cláudio Poiares, que ficou tetraplégico aos 15 anos, depois de bater com a cabeça na sequência de um mergulho mal calculado, Eduardo é “um ídolo”. “Ele não faz só por ele, faz por nós.” A esperança é de que as coisas avancem. Ganhar independência através de um assistente pessoal é muito importante e Cláudio sabe o que isso é. Entre 2006 e 2011 recebia 500 euros por mês do Estado que lhe permitiam ter alguém a cuidar de si. Hoje tem uma pessoa que o ajuda, mas só de manhã, pelo que a mulher e o filho garantem grande parte dos cuidados. “[Ter a ajuda de um assistente] ia mudar muito a minha vida”, reconhece Cláudio. Hoje, “ou temos um apoio familiar que nos ajuda, ou temos de ir para um lar.”
Nelson Mendes, que ficou tetraplégico aos 18 anos na sequência de um tumor cervical — veio da Guiné para Lisboa, em 1990, para que o operassem mas de nada lhe valeu —, também depende da família e dos colaboradores de uma instituição que o visitam todos os dias. Vive num rés-do-chão, em Rio de Mouro, perto de Sintra, que não está adaptado às suas necessidades. Sai “muito pouco”. A maior parte do tempo é ocupada a pintar, a escrever histórias para crianças e a jogar no computador.
Se tivesse um assistente pessoal gostava de poder sair mais. Talvez passear em Lisboa. “Tenho este sonho que é apanhar o barco e ir para o Barreiro.” E, “se pudesse”, juntava-se ao protesto de Eduardo Jorge.