A cena do ódio: culpados e consequências
A demonização sistemática tem três objetivos: deslegitimar estas pessoas, dificultar ou impossibilitar que as defendam e torná-las objeto de ódio.
A Folha de São Paulo publicou no outro dia um artigo com o título: “Joalheria quer competir com obras de arte pelo bolso dos super-ricos”. A primeira resposta no Twitter foi “Cadê as provas, Folha?! Não tem, né?! Porque não existem! Vocês estão com medo de perder os milhões que o governo PT banca para vocês, né?! Vocês e Haddad vão perder feio!!!”.
Se não consegue fazer sentido deste diálogo — chamemos-lhe assim, à falta de melhor — não se preocupe. O “diálogo” não faz sentido. E só se explica por uma razão: o artigo da Folha tinha a palavra “bolso” no título, no sentido de “algibeira”, mas “bolso” é também uma das abreviaturas que se usa nas redes sociais para Bolsonaro. E a conta de twitter que respondeu era um robot (depois do sucedido, foi alterada pelo seu proprietário para não se poder mais aceder a ela). E não é caso único: um artigo de outro site sobre “bolovo” (um bolo de carne, com um ovo no interior) levou o mesmo tratamento, porque “bolovo” é uma das inúmeras alcunhas usadas no Brasil para se referirem a Bolsonaro.
Isto parece inócuo, mas antes de falarmos sobre as consequências falemos sobre a metodologia. Tentemos pôr-nos no lugar de quem tem vontade e recursos — privados ou estatais — para fazer uma campanha de internet sistemática e sustentada de diabolização de adversários políticos ou da imprensa de referência. A maneira mais fácil de o fazer seria provavelmente ir buscar inspiração a pessoas reais com opiniões extremas e multiplicá-las automaticamente na rede (fácil de fazer nos dias de hoje) para criar uma guarda pretoriana de contas falsas em torno das contas verdadeiras. Uma conta falsa que comete o erro de insultar um artigo da Folha sobre bolsos presumindo que está a responder a um artigo sobre Bolsonaro (e denunciando o artigo como falso, independentemente do que quer que ele diga) é apenas a falha no padrão de comportamento automático que nos permite entrever o que está por detrás da campanha sistemática. Mas a maioria das contas falsas (ou semiautomáticas mas pilotadas por humanos) no Twitter ou no Whatsapp passam despercebidas. Criando a impressão de uma vaga, retroalimentam as contas de pessoas reais nas quais se inspiraram, tornando-as ainda mais ousadas.
Quais são as consequências? Aquilo que estamos a ver nos EUA, onde dez políticos democratas, incluindo as famílias Obama e Clinton, e um bilionário filantropo, George Soros, receberam bombas no correio provavelmente enviadas por quem acredita no ódio assim manufacturado. Para quem esteja habituado a seguir as dinâmicas na rede, os alvos desta campanha de bombas não são quaisquer pessoas: são as pessoas mais demonizadas na política americana e mundial, apesar de (ou por causa de) serem moderados. A demonização sistemática tem três objetivos: deslegitimar estas pessoas, dificultar ou impossibilitar que as defendam, e torná-las objeto de ódio. Já alguém se perguntou porque é que George Soros é tão detestado quando há muitos mais bilionários à direita — os irmãos Koch, o magnata dos casinos Wynn, e tantos outros — a gastar tanto ou mais dinheiro em política do que ele? As respostas são evidentes: porque é judeu e está à esquerda dos seus adversários. Como ativista milionário, Soros é quase artesanal: ainda acredita nos velhos métodos de criar universidades, atribuir bolsas e financiar ONG. Os seus adversários, por uma fração do dinheiro, criam vagas de fundos de apoio a candidatos e — mais eficaz ainda — tolhem os movimentos dos seus adversários, diabolizando os seus possíveis líderes políticos e dividindo a capacidade de resposta do campo rival.
Isto não é novo — sempre houve este tipo de política, e com cada inovação técnica demorámos sempre um pouco a entendê-la e a desmascará-la. E claro que isto não funciona no vazio — existem razões de fundo para o renascimento do fascismo nos tempos que correm.
Mas é nesta segunda parte, de saber as razões de fundo, que as explicações tradicionais da esquerda e da direita falham. Em primeiro lugar, porque desprezam as lições da história cultural e se esquecem dos três elementos de que nunca nos podemos esquecer ao interpretar as grandes convulsões políticas da história, aquilo a que chamo os três “M”: memória, média e medo. E em segundo lugar, porque tratam o ódio como uma consequência mas se esquecem que o ódio não é só consequência: é também uma causa que se gera a si mesma.
A todos os que acham que são as causas económicas que movem os trumpistas, pergunto: já ouviram um comício de Trump? Quando é que os apoiantes exultam mais: é quando se fala de empregos ou impostos? Não. É quando se fala do ódio: ao politicamente correto, à esquerda, a Hillary Clinton.
E a todos os que acham que o problema foi a esquerda falar demasiado de fascismo, estou à vontade para dizer: passei mais tempo da minha vida a avisar contra as amálgamas entre o fascismo e o conservadorismo ou o neo-liberalismo do que a alertar para o renascimento do fascismo — nem uma coisa impede a outra, nem elas são contraditórias entre si. Mas se é verdade que havia demasiada facilidade da esquerda em chamar fascista a um governo da direita, quando a direita estava no poder, quem antes banalizou o uso da palavra? Sou velho o suficiente para me lembrar de muitos colunistas da direita portuguesa que chamavam “fascismo” à ASAE ou à lei do tabaco nos restaurantes — para não falar dos muçulmanos. Por idiota que isso tenha sido de um lado ou do outro, acho que podemos ter bastante confiança em dizer: é irrelevante. Os fascistas não aparecem como baratas porque há gente a usar a expressão com demasiada leviandade. Também “estalinista” é muito usado e não criou uma vaga de novos estalinistas. Se alguma coisa for verdade, é o contrário: fomos demasiado ligeiros a acreditar que o fascismo não voltava, e por isso inventámos coisas como a Lei de Godwin que ridicularizava quem usasse o nazismo como termo de comparação numa discussão, e cujo próprio autor declarou agora obsoleta, por perceber que ela criou o espaço para que imitadores do fascismo e do nazismo tirassem partido dos nossos escrúpulos em usar a nomenclatura.
Ainda assim, tudo isso vale menos do que perceber que o perigo que temos à nossa frente é na essência igual ao que já enfrentámos no passado: uma geração de políticos que, por convicção ou oportunismo, perceberam como podem usar uma das grandes fraquezas da alma coletiva humana — a vontade de odiar dá poder.
Isto vai inevitavelmente fazer vítimas — já está a fazê-las. E vai demorar a combater. Desmamar uma sociedade do ódio é difícil e demorado. Melhor não a deixar cair em tentação.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico