Sonâmbulos de novo
A mensagem clara é que abriu a época da caça e que toda a gente pode fazer o que quiser contra as suas oposições onde quiser, porque as grandes potências vivem bem com isso.
O destino do jornalista saudita Jamal Khashoggi não é só provavelmente macabro; é sobretudo profético. Lembremos resumidamente quem ele era e qual é o seu caso: inicialmente um disciplinado jornalista no reino da Arábia Saudita, Khashoggi escolheu o caminho do exílio para poder falar mais livremente, e como residente permanente nos EUA escreveu crónicas críticas, mas ainda assim respeitosas, em relação ao todo-poderoso príncipe Mohammed bin Salman. Um dia entrou num consulado da Arábia Saudita na Turquia e não voltou a sair. A autoridades turcas alegam terem gravações — provavelmente obtidas através de espionagem contra a representação diplomática — provando que Khashoggi foi torturado, assassinado e desmembrado por uma equipa de 15 sauditas vindos do reino para a Turquia com vistos de turistas. Pelo menos um dos 15 já foi identificado como sendo um segurança próximo de Mohammed bin Salman. E acima de tudo a Arábia Saudita não apresentou até agora nenhuma explicação para o facto de Khashoggi ter entrado e nunca ter saído do seu consulado, nem sobre o que lhe terá acontecido lá dentro.
E no meio de tudo isto aparece uma reportagem aparentemente bem fundamentada no Washington Post dizendo que a família real saudita e a Administração Trump nos EUA estão a trabalhar juntas para aparecerem com “uma justificação mutuamente aceitável” para o que aconteceu — ou seja, que estão a conspirar para mentir.
Porque é que isto tem importância, para lá da violação de direitos humanos em concreto e da ação criminal que é — alegadamente, para já — matar um jornalista? Nos tempos cínicos em que vivemos, é fácil olhar para o caso Khashoggi e encolher os ombros dizendo que assassinatos de jornalistas há em todos os continentes e que nunca ninguém julgou que o reino da Arábia Saudita fosse especialmente virtuoso em casos deste género. Porque é que este caso é tão grave?
Para dizer de uma forma simples: porque já começaram guerras por menos. O caso em apreço não é só grave por envolver a morte de um jornalista. É gravíssimo por ter ocorrido no território de um país estrangeiro e dentro de uma representação diplomática, abusando das imunidades e privilégios que estas têm. Já vivemos épocas assim, em que fomos arrastados para guerras onde morreram milhões por causa de temeridades semelhantes. E uma delas foi a época imediatamente anterior à I Guerra Mundial. Um livro que já citei aqui do historiador Christopher Clark, sobre “como a Europa entrou em guerra em 1914”, tem um título que descreve este fenómeno de forma particularmente feliz: Sonâmbulos. Ou seja, a Europa entrou em guerra sem saber como, porque o jogo entre potências foi ficando cada vez mais perigoso e, a certa altura, qualquer provocação poderia acender a faísca de um mega-conflito.
O único erro está em pensarmos que a I Guerra Mundial foi uma guerra europeia que se mundializou. Errado: a I Guerra Mundial foi uma guerra europeia e do Médio Oriente que se mundializou. A I Guerra Mundial começou nos Balcãs, fronteira histórica entre a Áustria e o Império Otomano, e sem queda do Império Otomano não haveria Iraque, nem Síria, nem Arábia Saudita, nem Turquia moderna. O que estes países têm em comum não é apenas terem estado todos nas notícias por causa de várias guerras — invasões, guerras civis, guerras através de terceiros — nos últimos anos. O que eles têm em comum é conhecerem bem a sua história e saberem como os seus Estados nasceram há menos de um século após um conflito no qual entrámos como sonâmbulos a caírem num buraco.
O resto é o oportunismo da época atual. A Rússia assassina impunemente os seus ex-espiões em território estrangeiro. A Arábia Saudita observa como Putin consegue matar quem lhe apetece onde lhe apetecer, toma devida nota, e faz o mesmo. O resto da comunidade internacional olha com espanto para os Estados Unidos minimizarem a necessidade de se saber o que se terá passado no consulado saudita. A mensagem clara é que abriu a época da caça e que toda a gente pode fazer o que quiser contra as suas oposições onde quiser, porque as grandes potências vivem bem com isso e as organizações internacionais estão de pés e mãos atados pelas grandes potências.
Lá vamos nós de novo, sonâmbulos. A continuar assim, alguém acredita que não está a aumentar a probabilidade de um dia destes um caso como o de Khashoggi dar verdadeiramente para o torto?
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico