O Orçamento do Estado para 2019 e a autonomia dos museus
É importante que o Governo clarifique que competências vai delegar, ou se se limita a falar das competências que as direções dos museus já exercem.
A destruição, por um incêndio devastador, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no passado dia 2 de Setembro, alerta-nos, mais uma vez, para a importância da sustentabilidade das políticas públicas da Cultura – as limitações hoje colocadas à manutenção e segurança de edifícios museológicos, podem conduzir a danos irreparáveis. É que os museus, enquanto parte do serviço público de cultura, são importantes para a salvaguarda, conhecimento, partilha e projeção das múltiplas leituras que ao longo do tempo e do espaço as comunidades humanas construíram e constroem sobre si e sobre o mundo. Desproteger a memória, o património comum, que nos dá acesso aos sinais que pontuam os caminhos da História, das histórias, é, para qualquer comunidade, uma forma de morte. A morte, não é um fenómeno exclusivamente biológico – o apagamento da memória individual e coletiva corresponde-lhe, é parte da sua essência - um fim sem retorno.
Neste contexto, ganha ênfase o debate sobre a autonomia dos museus portugueses. O primeiro-ministro declarou, em Maio de 2019, no Museu Nacional dos Azulejos, que a autonomia dos museus seria legislada ainda este ano.
No passado dia 23 de Julho, a direção da DGPC fez chegar aos serviços dependentes o projeto de decreto-lei relativo a um “novo regime jurídico de autonomia de gestão dos museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos”.
Que os museus públicos precisam de maior autonomia e que a mesma será benéfica para a prestação do serviço público que lhes está cometido, é uma ideia mais ao menos consensual entre os profissionais do sector. Interessa perceber se esta proposta normativa corresponde a esse propósito, e, em que termos.
Começo por referir dois conceitos de base utilizados no projeto de decreto-lei: “autonomia” e “delegação”. A autonomia administrativa e financeira na Administração Pública existe, com maior ou menor amplitude, em entidades públicas cuja personalidade jurídica não se confunde com a do Estado, como instituto públicos e empresas públicas. São entidades que têm o poder de tomar decisões de gestão e de carácter financeiro sem subordinação ao poder hierárquico. As direções gerais, como é o caso da DGPC e das DRCs (de forma equiparada), não têm personalidade jurídica própria, e por isso não têm autonomia administrativa e financeira - são parte do Estado enquanto pessoa jurídica, dependem diretamente das decisões do membro do Governo da tutela.
Ora o atual Governo não muda, neste decreto-lei, a natureza jurídica da DGPC e das DRCs, que têm a responsabilidade de organização, administração e controlo de uma série de museus classificados como museus nacionais e de outros museus distribuídos no território nacional, que lhes estão adstritos. Como direções gerais, as suas competências e mecanismos relativos a receitas e despesas correspondem às regras gerais da Administração Pública. Ou seja, o que está em causa na proposta de decreto-lei de um novo “regime jurídico de autonomia de gestão dos museus” não é o conceito jurídico de autonomia administrativa e financeira aplicável à Administração Pública. Então, o que significa esta “autonomia”? O texto da proposta diz que “a autonomia de gestão dos museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos consiste na concessão à unidade orgânica da faculdade de tomar decisões relativamente à sua organização e atividade, no quadro das competências atribuídas ao seu diretor, e tendo em conta os recursos que lhe são atribuídos.” Estamos perante uma mão cheia de nada.
Será que, de acordo com o texto em análise, a direção da DGPC deixa de exercer, sobre os museus, entre outros, o poder de direção (administrativa, organizacional, financeira) e o poder disciplinar? E será que, correlativamente, os museus deixam de estar sujeitos, entre outros, ao dever de obediência? Não.
E no que respeita à delegação de competências da direção da DGPC nos museus, de que fala a proposta? Diz-se que “a autonomia de gestão dos museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos consubstancia-se através de um contrato plurianual de gestão que assenta: a) Na delegação de competências no órgão de gestão”. É importante que o Governo clarifique que competências vai delegar, ou se se limita a falar das competências que as direções dos museus já exercem.
O projeto de decreto-lei diz, ainda, que as unidades museológicas serão “singulares” ou “compósitas”; que os diretores serão recrutados por concurso internacional; que serão criados contratos plurianuais de gestão e definidos os termos de consignação de receitas.
O que são as unidades museológicas ou como são contratados os diretores não respeita, diretamente, à questão da autonomia da gestão dos museus. E a definição em concreto, das unidades em singulares e compósitas, feita no texto, não permite detetar nenhum critério racional ou operativo coerente.
No que se refere ao recrutamento por concurso internacional dos diretores dos museus, propõe-se que todos os atuais diretores passem a diretores a prazo, até ocorrerem as novas nomeações. Tal é compatível com a vigência dos mandatos dos atuais responsáveis? E não estará, atrás desta norma, escondida a vontade de afastar alguns diretores, digamos, “incómodos”?
Os contratos plurianuais de gestão e a consignação de receitas são boas ideias. Mas que novos meios se dão aos museus para os concretizar? Diz a proposta que “o montante de receita própria a consignar em sede de elaboração do orçamento anual de cada unidade orgânica terá por limite o montante das respetivas despesas resultantes do plano de atividades aprovado pelo diretor-geral da DGPC ou pelo diretor regional da DRC” e que “o excedente da receita de cada unidade orgânica, referido no número anterior, é distribuído pelas unidades orgânicas cujas receitas sejam inferiores às suas despesas de funcionamento, estimulando a respetiva programação.” Esta norma não acrescenta muito à situação existente. De facto, uma de duas: ou o princípio da solidariedade orçamental entre museus vai sobrepor-se ao aumento de orçamento das poucas unidades museológicas que têm capacidade de geração de receitas próprias em montante significativo, ou a capacidade de angariação de fundos por determinados museus vai diminuir a alocação de verbas do Orçamento do Estado.
Num momento em que os museus na dependência da DGPC e DRCs têm sérias dificuldades administrativas, de pessoal e financeiras, é fundamental que o novo decreto-lei não seja um mero documento para cumprir calendário político.
Durante décadas (não, não é culpa do Governo anterior, apesar do mesmo também ter responsabilidades na situação), o Estado tem vindo a diminuir as verbas provenientes de receitas do Estado para as políticas públicas de Cultura, em muitos domínios (património, museus, arquivos, cinema e audiovisual, teatros nacionais, etc.) e a aumentar a dependência dos serviços públicos de cultura de receitas próprias para fazer face às despesas de funcionamento.
Esta não é a melhor estratégia - é preciso que o Estado orçamente, a partir das receitas provenientes de impostos, o núcleo duro da presença pública nas políticas culturais. A razão é simples: deixar as instituições públicas de cultura muito dependentes de receitas próprias significa que, em períodos em que as mesmas não existam, diminuam ou sejam canalizadas para outras entidades, as instituições públicas de cultura ficarão expostas a grandes fragilidades. Quero eu dizer que não se deve estimular as entidades públicas a ter receitas próprias e dar-lhe a possibilidade de as gerir? De forma alguma. Mas estas receitas devem ser um estímulo e um adicional ao seu desempenho, e não a base da sua sobrevivência.
O atual Governo tem o poder - e o dever - de aumentar, não de uma forma cosmética mas efetiva, o Orçamento da Cultura para 2019, em coerência com o seu programa e discurso, e, em coerência com o discurso dos partidos que lhe dão suporte no Parlamento. Só isso permitirá, realmente, melhorar a situação de sufoco estrutural dos museus públicos e das estruturas públicas de Cultura em geral.
Vamos ver se há coragem para dar esse passo.