O custo de não aprovar o aborto legal na Argentina
A descriminalização do aborto não é uma concessão feita às mulheres. É um imperativo de direitos humanos que a Argentina ignora há anos.
Se a Argentina aprovar a legalização do aborto, ficará definido um novo padrão de progresso na protecção dos direitos das mulheres. Tal alinhará o país com outros que pretende copiar, como é o caso dos Estados-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a que a Argentina aspira aderir. A Argentina está efectivamente a fazer esforços significativos para cumprir os critérios de adesão da OCDE.
O Presidente argentino, Mauricio Macri, lançou o debate sobre a legalização do aborto. Porém, absteve-se de expressar posição firme sobre o assunto. Em Junho, a Câmara dos Deputados votou a aprovação preliminar do projecto de lei que visa descriminalizar a interrupção da gravidez até às 14 semanas. E hoje, 8 de Agosto, esse projecto de lei é debatido no Senado.
Neste contexto, o Presidente fracassou em antecipar as consequências potencialmente significativas de não ter manifestado publicamente apoio a uma determinada posição, remetendo para os legisladores o voto de acordo com as suas consciências. Esta conduta resultou na emergência de posicionamentos divergentes dentro do partido que governa a Argentina. O vice-presidente argentino e o chefe de bancada do partido no poder no Senado estão contra o projecto de lei, enquanto outras personalidades de vulto, como o ministro da Saúde, são a favor.
A dissensão interna veio revelar também quão próximas da posição da hierarquia da Igreja Católica estão algumas alas do partido no Governo. Apesar de, durante o debate sobre o projecto de lei, personalidades de topo da Igreja terem participado numa campanha que tem envolvido acções e estratégias profundamente questionáveis — desde a propagação de informação incorrecta até ser proposta a manutenção da actual legislação, em vigor desde 1921, que permite o aborto só se existir risco para a vida ou para a saúde da grávida ou em casos de violação.
O que parece é que há quem na Argentina se queira mover na direcção contrária à do resto do mundo. Ao mesmo tempo que países europeus estão a fortalecer as suas legislações para garantir o direito das mulheres a interromper a gravidez (recentemente por referendo na Irlanda, país com uma forte influência católica), o Governo argentino tem mantido uma posição ambígua sobre a importância de legalizar o aborto.
Esta ambiguidade terá um elevado custo para o Governo, também a nível interno. As manifestações de apoio maciço à descriminalização, quando o projecto de lei esteve a ser debatido na Câmara dos Deputados, foram títulos de notícias pelo mundo inteiro e o movimento argentino pela descriminalização vive um constante ganho de força.
Numa sondagem feita pela Amnistia Internacional, cerca de 60% das pessoas inquiridas afirmaram que são a favor da legalização do aborto. Acresce que mais de 63% consideram que a Igreja deve permanecer fora do debate. A percentagem de inquiridos a partilhar esta opinião sobe aos 70% em áreas cruciais como a cidade de Buenos Aires e a província de Buenos Aires, dois dos mais importantes bastiões pró-Governo. É impressionante que em ambas as zonas administrativas os chefes de governo local e os governadores tenham expressamente declarado ser contra o projecto de lei.
Na região e no resto do mundo, a Argentina é admirada pelas suas políticas de direitos humanos desde os anos de 1980. O país tem leis progressistas em matérias como a igualdade no casamento, a identidade de género, a procriação medicamente assistida, a responsabilidade parental e a indemnização no trabalho doméstico. Desde a década de 1960 que a maioria dos países do mundo rumam na direcção da legalização do aborto, impulsionados pelo compromisso com os valores igualitários de respeito pelos direitos das mulheres e pelo direito de protecção da saúde.
A descriminalização do aborto não é uma concessão feita às mulheres; é um imperativo de direitos humanos que a Argentina ignora há anos. Os tratados internacionais assinados pelo país exigem-no. Reconhecer e defender os direitos das mulheres também é um passo essencial para entrar de uma vez por todas na modernidade e apanhar o passo dos países desenvolvidos com os quais a Argentina se quer assemelhar.