“Ontem já era tarde”
As “salas de consumo” já existem, a céu aberto, rodeadas de seringas, preservativos e lixo. Para quem consome, se as verdadeiras salas de consumo assistido abrissem ontem, já seria tarde
Lina tem 50 anos, filhos, netos e "a maior doença do mundo”. Aquela que a faz ter vergonha de mostrar à frente dos outros. “Princesa, vira a cara para lá, por favor.” Toda a equipa de rua vira-se para outras conversas à volta de uma mesa improvisada, rodeada de chapa e um colchão a fazer de parede ao fundo. “Na verdade isto já é uma sala de consumo, mas nada disto é assistido”, reparou mal se tocou no assunto. "Já há muito tempo que devia existir, evitava-se tudo isto”, diz, atirando as mãos e os pés para a frente, sobre o lixo que não deixa ver o chão. Não tem razões para não frequentar o equipamento previsto para a Alta de Lisboa. “Se abrisse ontem já era tarde. Já muita gente se picou, já muita gente ficou doente, olhe, até já morreram."
A sala de consumo assistido junto ao Bairro da Cruz Vermelha, um dos focos de maior consumo na cidade, deve estar operacional no início do próximo ano, fruto da parceria entre a câmara de Lisboa e a Crescer. Inês Costa e Marta Correia, psicólogas das equipas de rua da associação, procuram acompanhar a rotina do consumo de cocaína e heroína fumadas e injectadas a céu aberto. Todos os dias fazem uma ronda para distribuir material asséptico para consumo, água, preservativos, apoio. E em todas as paragens encontram quem reconhece a necessidade de um lugar seguro e limpo para consumir. Quem diz que vai, que quer ir, que precisa de ir.
Primeiro, Inês e Marta entram pelo pequeno bosque onde se esconde a “sala” criada por Lina e companhia há pouco mais de um ano. É frequente mudarem-se, quando a pressão da polícia ou o vandalismo aperta.
É por isso que C., que não se quis identificar, queria um lugar seguro. A mulher de 51 anos, cara magra, corpo franzino sobre um bidão que faz de sofá, desvia o olhar: também preferia não ter que andar escondida. Já basta tentar esconder dos cinco filhos.
O “risco de morrer aqui”
A equipa continua pelas zonas onde o consumo de rua voltou em força nos últimos anos: param duas vezes em Alcântara, de cada lado da Avenida de Ceuta; outra equipa andará pelo Intendente e pela Mouraria.
O caminho entre o campo de milho não vai a meio e a voz de Valdemar já se ouve. Atropela-se com a euforia e a vontade de contar como foi “consumidor crónico durante 12 anos", mas agora "tudo está controlado”. As mãos agarram os braços grossos, duros e frios enquanto diz às psicólogas que vão deixar de o ver, porque deixará de consumir.
Valdemar repete uma expectativa que Marta e Inês já ouviram muitas vezes e outras tantas não se concretizaram. “O tratamento é um processo muito longo, é preciso que a pessoa queira ir, tenha confiança nas instituições. E conquistar essa confiança em alguém que vive marginalizado pode demorar anos, com avanços e recuos. Aí as salas de consumo são um salto em frente: são uma forma de aproximar as pessoas às estruturas”, diz Inês.
A sala de Valdemar são dois blocos de cimento rodeados de seringas, velhos preservativos e as embalagens verdes dos kits de consumo que as associações distribuem. Em pouco mais de 20 minutos chegam duas, três, cinco pessoas. São invisíveis para quem passa na avenida lá em baixo. Ocultos nas traseiras de um prédio, entre a vegetação.
“Acha que alguém gosta de estar escondido nesta imundice?”, interroga o homem de 50 anos. “Quanto mais correr o risco de morrer aqui.”
“Aqui ninguém tem culpa disso”
A alguém como António Moura, 69 anos, que morou três décadas no Casal Ventoso até o supermercado da droga ter vindo abaixo, “a vida ensinou a olhar por esses moços, a ter pena deles”. É, por isso, que quer que se concretize tudo “o que lhes possa dar alento”. Vítor Santos, ao lado e menos quinze anos sobre os ombros, repete um sentimento comum: “Eu nem sou a favor, nem sou contra, desde que não me chateiem…”
Mas sossego é o que Maria Silva Santos teme perder. A poucos metros da sua mercearia, o último vestígio de comércio na segunda metade da rua do Arco do Carvalhão, um edifício devoluto da câmara dará lugar à sala de consumo gerida pela associação Ares do Pinhal. “É óbvio que se eles existem têm que ter acompanhamento, mas aqui ninguém tem culpa disso. Isso é juntar a fome à vontade de comer”, diz aos 80 anos. É o receio de que regressem os flagelos do antigo Casal Ventoso. “Você sabe como era antes? O sobe e desce a toda a hora, a gente a ter que os mandar sair daqui. Ninguém quer a droga à porta”, atira Eva Rodrigues, 65 anos, a freguesa sentada à sombra da loja.
Muitos moradores e responsáveis de associações locais – tanto em Alcântara como no Lumiar – questionam porque se quer “centralizar o problema” na zona onde vivem ou trabalham, "reforçando o rótulo" de zonas já marginalizadas. Receiam que as duas salas de consumo assistido fixas atraiam consumidores e vendedores de outras zonas da cidade. Que alimentem a curiosidade dos jovens em territórios onde já são assediados pelo consumo. “Terá que haver um trabalho significativo na informação e desmistificação do que é realmente” este projecto, sublinha a direcção da Associação de Residentes do Alto do Lumiar (ARAL), para combater a “muita desinformação”, especulação e alarmismo de que o tema tem sido alvo.
A localização das salas de consumo baseou-se num estudo que identifica os lugares de maior consumo na cidade e deu conta de que a maioria dos 1400 consumidores identificados “não sairiam dos seus bairros para consumir”. Por isso, “as respostas têm que estar onde as pessoas estão”, refere Inês Costa.
"A gente precisa é de habitações"
Na Alta de Lisboa o passado fustigado pelo consumo está igualmente presente. Mais naqueles que vivem junto ao Bairro da Cruz Vermelha, menos nos novos moradores desta zona da cidade em constante crescimento. Isso influencia as posturas: “Quem vive mais próximo dos locais de consumo vê o programa como positivo, mas muitos moradores que não têm o problema à porta de casa são mais cépticos”, retrata a ARAL. Mas há sempre excepções.
A droga senta-se à mesa de quase todas famílias que Ana Paula Matoso conhece. Passa dos pais para filhos. Se não é o consumo, é tráfico, quando não as duas coisas. Também ela esteve presa duas vezes. “Se me perguntasses há uns anos se concordava com as salas de chuto dizia-te logo que sim. Convinha-me. Até montava uma banquinha à porta. Mas hoje concordo é que haja centros para tratar os toxicodependentes. Psicólogos e terapeutas que ajudem estes moços, porque isto é uma grande doença”, afirma.
Ana Paula nasceu há 53 anos no Bairro da Cruz Vermelha. “Uma pessoa ao longo dos anos vê muita coisa e aprende-se que o toxicodependente não vai sair da rua, não é?”, diz, lançando a pergunta para o outro lado da mesa do café onde Cidália Figueiredo acena em concordância. A existir uma medida destas devia ter sido nos anos 90, “no pico dos consumos de droga”, acredita.
Quando a discussão chega a Tânia Santos, 30 anos, esta arremessa para outra questão: “A gente precisa é de habitações, de melhores escolas.” E a ARAL partilha os lamentos sobre” a falta de empenho na resolução de outros problemas do território que inevitavelmente também são complementares” ao consumo de droga. “As pessoas têm dificuldade em compreender que a câmara invista noutras coisas e não na escola dos seus filhos”, exemplifica o presidente José Almeida.
"É como se vissem alguém a comer chocolate"
Do minimercado onde trabalha há 18 anos Maria de Lurdes Mbanguine, de 47, vê bem quem passa e é dali que assiste à “luta indigna” de que tem “a doença da droga”. Não é raro cruzar-se com seringas no chão e “jovens em desespero”. Nem lembrar-se do “miúdo que não tem sítio para onde ir, que fica caído num andar” do seu prédio. Se tivesse uma vida mais folgada, voluntariava-se para ajudar na sala que há-de abrir. “Era uma maneira de ajudar aqueles miúdos que ninguém nos livra de serem os nossos filhos.”
As crianças são quase sempre evocadas. Ou por aqueles que sentenciam que as salas vão despertar a curiosidade de crianças e jovens pelos estupefacientes. Ou por quem acha que um local de consumo vigiado vai reduzir a exposição dos filhos ao consumo – figura com que se cruzam nas escadas do prédio, quando brincam na rua ou à porta da escola.
“Há uns anos as crianças comentavam, ficam incrédulas se viam alguém a injectar-se. Hoje é uma coisa normal. É como se vissem alguém a comer chocolate”. Evelize Costa, assistente operacional numa escola, vê neste projecto algo que ajuda a todos. E se há coisa que aprendeu nos quatros anos em que trabalhou como mediadora junto de consumidores, num projecto do extinto Instituto da Droga e Toxicodependência, é que quem consome precisa de um espaço digno e seguro, onde “alguém esteja lá para eles”.
Mas o sucesso das salas depende da forma como a comunidade é envolvida daqui em diante, defende “Vivi”, como é conhecida. “Se isto não for trabalhado nas instituições locais, nas escolas, junto dos jovens, o espaço vai ser vandalizado, vão-lhe fazer trinta por uma linha", diz-lhe a experiência. Importa formar mediadores. E aproveitar a deixa para trabalhar a prevenção nas escolas, a reinserção fora delas, diz esta dirigente da associação Espaço Mundo. “As pessoas têm coração, só temos que lhes mostrar que isto não é um montar um altar à droga. Eles já a consomem, devemos é deixar que o façam com dignidade."